Telma Scherer interpreta o primeiro poema de seu livro Squirt, semifinalista do prêmio Oceanos 2020, publicado pela Terra Redonda Editora.
Os livros Squirt e O sono de Cronos, da poeta Telma Scherer, estão à venda no site da Terra Redonda Editora em formato impresso ou ebook.
Uma mulher tem dois seios
e pode escrever sobre eles
se ela quiser.
Uma mulher pode escrever enquanto
os seios repousam na beira da mesa
(de repente doloridos, inchados,
inertes a qualquer averiguação).
Ela pode escrever, distraída,
enquanto
sobre os seus seios pousa também
o olhar
de um homem,
que não olha senão para o seu livro,
mas que
em momentos estranhos
(quando ela fica estranha)
desvia os olhos do livro
para os seios
e mais,
se estão ali, sobre a mesa,
como dois guardiões da linha.
Pessoas sem seios,
pessoas sem útero
– ela pensa – têm mais tempo
porque não precisam
se livrar do que não têm:
a mágoa, a dor e o inchaço,
o aperto do sutiã, e o ser olhada
quer se queira, quer não.
Um homem tem dois pés
que não doem, repousam sobre o puff
enquanto ele olha para o livro.
Ele carrega teorias
como quem
masca a argamassa
e já comeu
todos os tijolos.
Os pés da mulher grudam
na superfície do assoalho
antes de deslizar.
Eles precisam sentir o chão
para que ela possa
talvez escrever – talvez
escovar os dentes
com suas raízes
finalmente encobertas
por esse olhar
molhado em tédio.
– Está com fome? – ele pergunta,
em sinal de que ela se entranha.
Ela sempre está com fome
e comeria um novilho
com seus seios
assim
doloridos, surdos e
de repente – novinhos em folha.
Então ele pode
deitar fora a argamassa e
usar os seus pés, tirá-los do puff,
afiar as facas
na cozinha, como um samurai,
depois cortar os bifes
gordos e sangrentos que lhe dão
um certo nojo.
Eles comem tudo e
comeriam
as telhas da casa
e todo o conteúdo
da caixa de gordura.
Uma mulher pode engordar
– se ela quiser,
pode cuspir, pode
ficar parada, guardiã de si
por longos pontos e
linhas retilíneas
– ou curvas.
Ela não precisa
ser uma mulher
que tem um homem
que corta os bifes.
Ela pode
segurar com as mãos
as pernas assadas
de um cadáver
– e roer
a pele dos dias, dura
como todos os tijolos
que saem dos seus lábios
quando ela escreve, distraída,
sobre os puffs e as facas
(fossos kamikazes)
que não importam,
mas gozariam entre
seus dois seios doloridos.
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