Marina Yukawa, na revista Úrsula
Jornalista e escritora, autora de dois contos do livro "Isto não é Direito" (Terra Redonda, 2021), Marina Yukawa reflete sobre a sua produção e as de escritoras como Han Kang e Laura Honda-Hasegawa.
O que eu escrevo? Por que eu escrevo? São perguntas que me faço olhando para trás, mas vislumbrando o que está por vir; sonhando com o que ainda vou escrever.
Talvez estejam mesmo no sonho os vestígios das respostas às minhas perguntas. Mais do que transformar sonhos que tenho durante o sono em histórias (coisa que faço com diversão sempre que a noite me presenteia uma fantasia nova), tenho tentado trazer à ficção os temas da realidade que mais me sensibilizam e que tiram de mim as palavras possíveis. Jornalista de formação, muita pauta de jornal fica entalada na minha garganta sem que eu consiga me expressar. Expressar o quê?, paro então para pensar diante de atrocidades das mais variadas e absurdas que estampam as manchetes e portais de notícias. Indignação, revolta, medo? A formalidade de palavras tão frias, duras e angulosas não consegue contemplar a delicadeza e a complexidade de sentimentos tão íntimos e humanos.
E é, então, que me volto à literatura e ao modo literário de narrar histórias para tratar de verdades tão difíceis. Escrever a reportagem Sorrisos Amarelos (2020) como o meu trabalho de conclusão de curso foi uma primeira experiência que me serviu de escola. Pude unir a profissão que escolhi com a minha maior paixão, colocando em palavras as histórias de cinco jovens mulheres amarelas que vivem no Brasil, suas vivências que envolvem temas delicados como preconceito, xenofobia, violência e abuso sexual, fazendo uso do estilo literário. Tudo isso sem tirar delas a autenticidade de seus relatos, tentando preservar também sua humanidade ao máximo.
Quanto à escrita de ficção, que é no que me dedico mais ultimamente, posso dizer que trago à fantasia o que é dela, o que nunca deveria ter saído do plano do sonho (ou do pesadelo), da ficção mais pura e genuína (pois inventada). Tento, através da escrita ficcional e fantástica, demonstrar o quanto algumas realidades, às vezes tão normalizadas, são absurdas e insuportáveis. Ouço e leio tanto por aí que para um escritor tem sido difícil competir com a realidade. Embora a frase seja dita da boca para fora, como uma piada ou uma desculpa, me entristece. Primeiro porque não queria ter de competir por nada, com ninguém; depois porque, no momento em que estamos, não penso que me cabe competir por algo, mas sim lutar contra a realidade que oprime, que suprime direitos, que exclui e que mata.
Acredito que conhecer histórias faz com que aprendamos a nos colocar no lugar do outro. Conhecer realidades diferentes faz com que as tiremos da invisibilidade, do lugar oculto da indiferença. A leitura me prepara, como em um treino mesmo, aguçando meus olhos e meus ouvidos para a escrita. E, quando escrevo, tento me posicionar em diferentes ângulos como observadora e ouvinte para entender as realidades à minha frente, no papel em branco (na tela de um doc recém-criado), e também ao meu redor. É quando escrevo que mais me sinto humana, posto que as histórias me sensibilizam. E, se continuo escrevendo, é por acreditar que ainda somos, afinal, todos seres humanos.
Tenho a convicção de que a literatura une. Trata-se de uma certeza que cresceu em mim no decorrer dos anos, dos escritos e das leituras. Temos a visão idealizada de que tanto escrever quanto ler são atividades solitárias e de introspecção. E, claro, podem ser. Mas não devem. Um livro é uma porta aberta, pois chama outro, outros; livros conversam entre si. As leituras são inesgotáveis. Mesmo em cem, mil anos, não poderia ler todos os livros do mundo. Além disso (e é como uma mágica, já que existem incontáveis obras e cada um lê as de que mais gosta, sendo uma alegria a minha leitura coincidir com a de alguém), quantas pessoas eu já não encontrei através dos livros? Sou grata e muito feliz por todos os amigos de livro que conheci até aqui.
Foi graças ao Sorrisos Amarelos que conheci outras obras escritas por asiáticos e brasileiros descendentes de asiáticos, incluindo as crônicas e as poesias da Marilia Kubota (Eu Também sou Brasileira, de 2020; Velas ao Vento, também de 2020; Diário da Vertigem, de 2016) e os contos da Rafaela Tavares Kawasaki (Enterrando Gatos, de 2019). Nós três e a pesquisadora Luana Ueno iniciamos o Clube de Leitura Mulheres Asiáticas em junho-julho de 2021, fruto de uma conversa que tivemos na mesa promovida pelo CEA-UFF chamada Literatura Brasileira: Outras Vozes, que contou ainda com o pesquisador Robson Mori na organização e na mediação.
Nos dois primeiros meses de clube, lemos A Vegetariana (2018), da sul-coreana Han Kang, e Sonhos Bloqueados (1991), da nikkei Laura Honda-Hasegawa. O que vejo de semelhança entre os dois romances e em tantos outros escritos por mulheres asiáticas que já li (sabendo que existe um sem número de outras obras que ainda não conheci, porque a literatura é mesmo inesgotável) é uma busca, muitas vezes, incessante e insana pela individualidade, pelo eu que se perde em meio aos padrões, às normas, à objetificação a que somos submetidos em uma sociedade que produz pessoas como se fossem bonecas feitas em fábrica. São títulos que têm como protagonistas personagens, mulheres em sua maioria, que não se encaixam, que estão à margem, invisíveis no dia-a-dia. Algumas tentam se inserir e não conseguem, outras se cansam de tanto tentar. Se chamam a atenção, geram desprezo, estranhamento, perplexidade e até nojo. São consideradas insanas e levadas a extremos. É o que acontece com Younghye, a protagonista de A Vegetariana, por exemplo.
A beleza dessas obras está justamente na visibilidade que dão aos sentimentos dessas pessoas, dando a elas a devida humanidade. Uma luz é posta sobre elas, uma luz que se estende e se propaga, chegando também a mim, que as leio com tanto prazer e encantamento. Talvez isso seja o que chamam de representatividade. Um carinho, um afago na cabeça e a certeza de que não estamos sozinhos. Não estamos tão sozinhos no mundo como querem que acreditemos. Querem que acreditemos que não existe a tal coisa do nós. É a Literatura (e as outras artes) que nos une e não deixa que nos esqueçamos.
Sonhos Bloqueados é considerado o primeiro romance escrito por uma nikkei no Brasil, em português. Conta a história de uma filha de japoneses e da sua vida aqui, mostrando a estrutura da sua família e também as suas relações no trabalho, as amizades, os amores e os sonhos. Se, por um lado, me pergunto: será que é mesmo o primeiro ou apenas não conhecemos os demais?, por outro, me inspiro e nutro por Sonhos Bloqueados um carinho imenso. É uma autora nikkei brasileira contando a história de uma protagonista nikkei brasileira pela primeira vez. Me diz que também posso escrever. Me diz que também posso escrever sobre pessoas como eu.
Eu me pergunto, no meio dessas leituras todas e olhando ao meu redor: quem eu sou?. Entendo que me perguntar quem eu sou? é como voltar ao início e repetir o que eu escrevo? Eu sou o que escrevo. Ou melhor, escrevo quem eu sou.
Eu sou uma sucessão de sonhos a sonhar que se questionam se o que é “normal”, racional até, é, de fato, aceitável. Ou por que aceitamos as coisas tão facilmente. Me mantenho calada a maior parte do tempo, mas sigo sempre vigilante. Observo, escuto e depois escrevo. Escrevo, pois quero dar luz aos invisíveis, contar histórias que foram há tanto e tanto tempo silenciadas, sem que uma mísera alma ouvinte as escutasse. É com calma e paciência, mas também cheia de entusiasmo e paixão, que quero aproximar as pessoas, encurtar as distâncias, cultivar a humanidade que sei que ainda existe em cada um de nós. Tudo isso através da escrita. É pretensioso, eu sei. Mas é o que me mantém escrevendo. É o que me mantém viva.
Vivo e escrevo para nunca acordar desse sonho.
Dedicado aos meus amigos de livro, e também de escrita. Vocês me inspiram.
____________ Marina Yukawa é escritora e jornalista. Nasceu em 1994 na província de Saitama, no Japão. É brasileira e vive desde os dois anos na cidade de São Paulo. Graduada em Jornalismo pela ECA-USP em 2017, apresentou a reportagem Sorrisos Amarelos — Histórias de jovens mulheres orientais no Brasil que foi publicada em livro em 2020 pela Editora Viseu. É autora dos contos Setas que voam de dia e Abutre, que fazem parte da coletânea "Isto não é Direito", à venda no site da Terra Redonda.
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