Leia trecho do livro "13 anos de Lula e Dilma" (Terra Redonda, 2023), que avalia as consequências para o PT do fracasso do projeto nascido na Constituinte de 1988. Os resultados das eleições de 2024 parecem confirmar os impasses já apontados para o partido, deteriorado pelas engrenagens do machismo e do racismo estruturais.
Sergio Alli
O PT nasceu desejando construir-se de baixo para cima, como instrumento autônomo dos trabalhadores. Sua identidade de trabalhador era expressa pelo personagem metalúrgico João Ferrador, homem e branco (por ironia, criação da Laerte). Achávamos que tudo bem, com o tempo as diferenças essenciais se equilibrariam, o machismo e o racismo seriam superados quase naturalmente. Mas não foi assim que ocorreu. Certas coisas não mudam se não forem mudadas.
O projeto original do partido, com seus princípios e utopias, não teve como se manter preservado em sua essência. A máquina partidária foi sendo ocupada e reorientada por um setor da esquerda tradicional que se tornou gerente de sua burocracia. Com o tempo, muitos dos quadros partidários foram cooptados pelos confortos da institucionalidade na gestão do aparelho de Estado ou seduzidos pelo poder financeiro dos corruptores.
A perda de qualidades e compromissos não tirou do PT a relevância para a definição do destino próximo da sociedade brasileira. O atual governo do presidente Lula, ao reconstruir as políticas de distribuição de renda e financiamento do desenvolvimento, está assegurando ao Brasil as condições básicas de convivência e perspectiva de futuro, mesmo sob o assédio das oligarquias parasitárias que dominam o Congresso Nacional. (...) O pragmatismo conciliador de Lula e do PT têm se mostrado fundamental para recompor um arco de alianças amplo, capaz de levar à frente o remendado e instável projeto de país que sobrou dos escombros da Constituição de 1988, após a passagem dos governos golpistas de Temer e Bolsonaro.
A conciliação parece ser o caminho necessário para frear a progressão do extremismo de direita que brota nesta conjuntura de temor e ameaça cada vez mais próxima da hecatombe ambiental e do crash do cassino financeiro global. O limite da conciliação é que ela é paliativa e só resolve uma parte dos problemas, os mais fáceis. Vai sempre sendo adiada ou inviabilizada a solução dos problemas estruturais, pois essa é uma condição imposta pela minoria dominante para qualquer composição. É o que eles chamam de democracia, na versão “liberal”. (...)
O projeto democrático popular pós-ditadura foi interrompido pelo golpe do impeachment contra a presidenta Dilma muito antes de cumprir seu objetivo maior de levar à emancipação da maioria da sociedade brasileira. Conseguiu engendrar grandes feitos, mas quase sempre mantendo o povo pobre, preto e periférico e seus representantes autênticos distantes dos centros institucionais de poder.
Por um lado, isso foi trágico. Deixou o povo exposto à doutrinação fundamentalista e à violência das diversas estruturas políticas de clientelismo e controle que marcam o cotidiano das periferias e comunidades nas cidades brasileiras.
Todavia, por outro lado, esse afastamento criou as condições para a gestação e emergência das experiências potentes de auto-organização popular que já nos trazem os sinais, cores e luzes de que o futuro novamente se aproxima.
Desta vez, quem melhor o anuncia são as mulheres pretas potentes e libertárias que estão cada vez mais a ocupar nossa cena pública, das quais eu particularmente destaco as exuberantes filósofas e escritoras Jacira Roque de Oliveira e Maria Vilani. Mulheres como elas estão hoje, coletivamente, no lugar que foi o de Paulo Freire para minha geração, indicando os caminhos da construção do poder popular. Para honra e memória de Marielle Franco, cujo assassinato foi um ponto de mutação e de basta! na luta contra a opressão às mulheres afrodescendentes.
Escrever este livro consolidou minha compreensão de que nenhum projeto de transformação do Brasil e de superação de seus graves problemas de desigualdade, exploração e humilhação do povo vai funcionar (com a necessária radicalidade) se continuar a ser liderado e dominado por homens brancos. Sem chance.
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Sergio Alli é editor da Terra Redonda e autor de "13 anos de Lula e Dilma"
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