Gabriela Tunes
Outro dia mesmo, Ana Marcela Cunha foi hexacampeã do circuito mundial de natação em águas abertas, se consolidando como a atleta mais vitoriosa do Brasil, de todos os tempos, de todos os gêneros. Eu escrevi um texto mencionando sua inteligência, não a corpórea, a da coordenação motora, a da disciplina cotidiana, mas a cerebral mesmo, do pensamento abstrato, da alta capacidade cognitiva, coisa de que pouco se fala, porque o estereótipo do atleta é aquele da pessoa que tem muito músculo e pouco cérebro. E isso não é verdade. É um tipo de preconceito contra pessoas cuja ferramenta de trabalho é o próprio corpo.
E, então, logo depois, caiu essa bomba na nossa cabeça, a morte da Isabel, dia 16/11. E o Brasil se lembrou da trajetória dessa mulher fantástica. Ela, que escandalizava porque não temia em demonstrar, em vários campos, a sua inteligência absurdamente fora da curva.
A trajetória dela escancara: embora seu corpo fosse uma máquina perfeita, totalmente apta e adaptada a jogar vôlei, que lhe deu fama como uma das maiores desse esporte no Brasil, ela ganhou ainda tanto ou mais destaque pelo que foi capaz de fazer quando não estava exatamente concentrada em afundar a bola na quadra adversária, ainda que fosse jogadora profissional e sua atuação estivesse sempre ligada ao esporte e, principalmente, ao vôlei.
Por tudo, podemos dizer, sem risco de errar, que ela abriu caminhos trilhados por grandes atletas mulheres, de outros esportes, como Marta Silva, Ana Marcela Cunha, Rayssa Leal e Rebeca Andrade, para citar exemplos bem atuais. Foi Isabel que entrou na quadra de vôlei grávida, que fez todo mundo pensar no fato de que são as mulheres que carregam crianças; por isso, teve que dar explicações, conceder entrevista dizendo que estava com acompanhamento médico, que se sentia bem e que o bebê não corria riscos. Foi julgada como ninguém nunca julgou um jogador de futebol que faz gestos de ninar um bebê, em um jogo da copa do mundo, porque seu filho estava nascendo exatamente naquele dia, e ele não precisou estar presente no momento mais crucial da vida do filho para ser considerado um bom pai. Já a mãe, basta que ela esteja ausente por um segundo na vida do filho para que seja considerada uma péssima mãe. Ninguém pergunta aos atletas homens quem fica com os filhos deles para que possam se dedicar tanto ao esporte. Por causa da ideia de que a maternidade é incompatível com uma carreira no esporte profissional, muitas atletas abrem mão de terem filhos, e muitas mães abrem mão de suas carreiras como atletas. Mas a Isabel, quando os termos dessa discussão ainda estavam em seus primórdios, não abriu mão de nada. Eis aí uma mais uma demonstração de sua inteligência colossal. Ela mostrou que isso é uma falácia, uma mentira. Que dá para levar o filho, dentro da barriga para a quadra, e dá para levar a vida de atleta de alta performance (bem) criando cinco filhos.
E tem mais: ela foi, ainda, artífice da consolidação do vôlei de praia no Brasil, sendo que, não bastasse sua brilhante atuação nas quadras, acabou por se tornar um ícone também nas areias. E levou, com ela, vários dos seus filhos para o vôlei de praia, e, sendo mãe e treinadora, perenizou-se nos pódios mundiais desse esporte também por meio deles. E contribuiu sobremaneira para que o Brasil se tornasse, no vôlei de praia, uma potência mundial. Mas isso era pouco para ela.
A inteligência da Isabel, que lhe deu um apurado senso de justiça, mostrava para ela que não adiantava apenas estar em dia com os treinamentos, com o condicionamento físico, com as novidades táticas e técnicas. Era preciso mais, para o esporte brasileiro, para as mulheres brasileiras no esporte. Era (e é) preciso desfazer injustiças, de gênero, de raça, de classe, para que haja pleno desenvolvimento de todos os esportes no Brasil. Então, sobre isso, e por isso, ela falava. Não tinha medo de falar o que pensava. E, pela força de sua palavra, de seu pensamento, da consciência profunda do lugar que ocupava, de seu desejo de grandeza, não apenas para si, mas para o vôlei brasileiro, e, por derivação, para o esporte brasileiro, para as atletas brasileiras, que ela foi tão importante.
Um dia, em um jogo da seleção, quando a torcida brasileira hostilizava as adversárias, ela pegou o microfone e ameaçou parar de jogar se as ofensas não parassem; outro, saiu em defesa da filha que disse “Fora, Bolsonaro”, em um evento esportivo, e foi denunciada ao Tribunal de Justiça Desportiva.
Foi com esse senso de justiça que ela abriu caminhos e apontou direções para o esporte brasileiro. Ela falava, contrariando a ideia de que atleta só tem que fazer força e não tem que emitir opinião. Ela levantava a voz contra os preconceitos e falava. Uma vez, ela disse: “tem um lado lamentável nesse julgamento, que é a frase que o atleta tem que saber que é o artista do espetáculo, mas não pode falar. Tá tudo ali, nessa fala. Você pode usar seu corpo, pode ser visto, mas não pode ser ouvido, não pode falar".
Ela, agora, teria voz e caneta para ajudar a construir as políticas públicas para o esporte no0 Brasil. Todos nós teríamos tanto a aprender com ela. Certamente, ela agigantaria ainda mais o esporte brasileiro, assim como fez com o vôlei feminino e com o vôlei de praia. Certamente, ela voltaria atenções para as mulheres atletas, na tentativa de dirimir muitas dessas injustiças que vigoram no ambiente esportivo, e que acabam dando o tom das carreiras e das trajetórias de grandes atletas femininas.
Nós perdemos tanto com essa partida, não apenas aquilo que já sabemos que ela era e que ela fez, mas perdemos, sobretudo, as possibilidades não realizadas por Isabel. Certamente, ela nos surpreenderia com algo genial, como sempre fez. E, agora, além da tristeza, ficamos com esse vislumbre nos olhos: o que será que ela faria? Nunca saberemos, nunca teremos a sagacidade de imaginar. Se, no esporte, quando uma atleta precisa deixar o jogo, é prontamente substituída, a Isabel não será. Nunca mais.
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Gabriela Tunes é feminista, flamenguista, nadadora, musicista, servidora pública (consultora legislativa na Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do DF), bacharel em Biologia, mestre em Ecologia e doutora em desenvolvimento sustentável. Também está na Terra Redonda: é autora do livro "Máscaras no varal: a revolução é preta, feminista e imparável" e participou da coletânea "Contos da Quarentena".
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