Marina Yukawa, na Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares
O machismo em forma de perseguição e tortura nas dobras do cotidiano
Tomava o metrô como em todos os dias. Estava cheio, o que não é surpresa nenhuma, mas felizmente tinha lugar para me segurar contra os solavancos e arrancadas bruscos. Desceria logo, de qualquer forma, e não tinha intenção de me sentar. A temperatura perto das portas é mais agradável pela proximidade do ar-condicionado. Era cedo, mas já estava quente na rua, muito muito quente, e eu tentava equilibrar minha temperatura corporal com a do ambiente subterrâneo tão hermeticamente fechado em que estava. Sentia o suor escorrer pelas costas, entretanto, e minhas mãos escorregavam pelo apoio de metal, procurando a parte ainda fresquinha para agarrar. Me equilibrava passando o peso do corpo de um pé a outro como numa dança desengonçada e cansada. Ainda sentia o resquício do sono mal dormido nos olhos e o temor pelo dia que tendia a ser longo demais.
Demorei a perceber que o homem a minha frente me encarava com curiosidade. Tentei não me importar demais, apesar do constrangimento, pois sabia que estava, inevitavelmente, dentro do seu campo de visão. Mas então a mulher ao lado dele voltou seus olhos para mim com a mesma insistência e temi que estivesse com a roupa vestida do avesso, ou pior, me esquecido de vestir qualquer roupa, como naqueles pesadelos de adolescente. O máximo que poderia ter de errado comigo, visivelmente, era o cabelo desgrenhado e mal penteado. Quando uma terceira pessoa, a mulher ao meu lado, se virou para me encarar, eu a encarei de volta. O que há?, eu perguntei, mas só com o olhar. Minha garganta estava seca, incapaz de dizer qualquer coisa. Ela me cutucou, como se ainda não tivesse minha atenção por completo, e depois apontou para a televisãozinha do vagão, que fica no alto das cabeças das pessoas sentadas, que também começavam a prestar atenção em nós. Eu nunca reparo nessas telinhas do metrô que ficam repetindo manchetes pela metade, avisos, orientações e também propaganda. É como se estivessem sempre à margem de mim. Mas ali, aquela mulher me apontou a tela e eu levantei os olhos para ver.
— Não é você ali na foto, moça? No anúncio de pessoas desaparecidas?
Eu me lembro da foto. Uma foto que meu ex tirou, numa época em que ainda estávamos bem. Eu quase nunca me permito fotografar de frente, de rosto, como naquela foto, mas ele me pegou de surpresa enquanto esperávamos nossa refeição em um restaurante. Olhei diretamente para câmera, ou melhor, para ele, e ele me capturou numa fração de segundo. Eu ri, pedi que me mostrasse a foto, que não ficou ruim. Ficou bastante boa, na verdade, tanto que a usei no perfil de minhas redes sociais até que nos separamos sem chance de volta. Devido a isso, muita gente me conhece virtualmente apenas por aquela foto. Vê-la ali, circulando na programação da tv do metrô, como retrato de uma pessoa desaparecida, me trouxe um aperto intenso e dolorido no peito. Um tipo de descolamento.
As pessoas próximas começaram a reparar na foto da tv, comparando aquela pessoa perdida a mim. Cochichavam entre si, voltavam o olhar da tv para mim o tempo todo. Me cercavam com cautela, devagar, mas constantemente. Estava disposta a dizer que era só alguém muito parecido comigo, que meu nome não era o que estava escrito ali, que devia ser uma coincidência... estava disposta a me negar para que parassem de me olhar e seguissem com suas vidas, mas nem eu acreditava na mentira.
Pensei que seria uma brincadeira de mau gosto. Uma brincadeira dele, por ser a foto que ele tirou de mim. Um apelo desesperado e covarde ao meu sumiço. Não atendo aos telefonemas nem respondo mensagens há mais de três meses. Deixei que batesse e gritasse por mim na porta de casa mais de uma vez, bem quietinha, fingindo que não tinha ninguém. Recuso todos os presentes e peço que devolvam as flores. Quem sabe não tenha visto, numa ida ao trabalho de metrô, uma chance de me encontrar. Ou de, novamente, me constranger e envergonhar na frente de um monte de gente.
O volume de pessoas ao meu redor aumentava, algumas preocupadas, outras só curiosas, esticando os pescoços para me olhar. Por puro azar, ou por um propósito tenebroso, todas as televisões do vagão travaram, congelando bem na minha imagem de desaparecida. Alguns, ainda confusos, continuavam comparando a foto à minha cara, outros tiravam fotos ou mesmo filmavam. Eu grudava as mãos ao metal do apoio, quase que fundida a ele, e apertava os dentes. Olhava para um e para outro, eram faces desconhecidas, hostis, amedrontadoras. Os cochichos viraram burburinho e eu já não conseguia distinguir muito o que diziam. Não conseguia entender nem os avisos sonoros do metrô. Era como se não soubesse mais falar português. Tinha esquecido a estação em que deveria descer.
Mas eu não podia acreditar. Seria irresponsabilidade demais, até para ele, colocar minha foto, a foto de uma pessoa que está bem e sã, vivendo a rotina costumeiramente, num anúncio de desaparecidos por um capricho qualquer. Os anúncios de desaparecidos são coisa séria. Ele não poderia, ele não seria capaz de tamanha perversão. E, fato é que qualquer um tem acesso à minha foto pela internet. Alguém querendo passar trote em alguém — mas em quem? No meu ex? Na minha família? —, ou mesmo um golpe, está cheio de golpe na praça ultimamente... mas que tipo de golpe? Há recompensas em caso de pessoas desaparecidas? O anúncio não diz nada disso. E que vantagem financeira há em anunciar alguém como desaparecido? Eu não pude pensar em nada que justificasse algo tão invasivo.
Uma mulher tentou pegar a minha mão. Pensei ter lido em sua boca as palavras Você está bem?, mas não processei a voz dela. Fiz que sim com a cabeça, freneticamente, e depois fiz que não. Recusei o toque dela. Algumas pessoas copiavam o telefone do anúncio, outras já tentavam ligar pelo celular. Não sei se algum deles conseguiu falar. Com muito custo, descolei a mão do apoio de metal; queria correr, fugir, saltar na estação em que chegávamos fosse qual fosse, mas bloquearam minha passagem e não deixaram que eu saísse. Meus olhos ardiam, mas não tinha água para chorar. Não era tristeza que eu sentia. Era um desespero... um sentimento tenebroso de esvaziamento.
Será que eu desapareci? Será que alguém tentava tomar o meu lugar? Repassei minhas últimas horas na cabeça em um piscar de olhos. Acordei na minha própria cama, tomei café na minha própria cozinha, usando minha própria caneca. Deixei comida para meu próprio gato, no próprio pratinho de comida dele. Deixei água fresca também. Saí, tomei o ônibus até a estação de metrô... não demorou vinte minutos, mas estava bastante calor... no dia anterior, deitei e dormi na mesma cama onde acordei, jantei na mesma cozinha em que tomei o café, tomei banho no meu próprio banheiro... cheguei em casa do trabalho e telefonei para minha mãe, mandei mensagens de texto para minha irmã. Trabalhei e trabalhei, cheguei ao trabalho com o mesmo metrô... não, não exatamente o mesmo, mas parecido, do mesmo jeito...
As pessoas me seguraram, e quando chegamos à estação seguinte, chamaram os guardas. Apontavam para a tela da tv travada e depois apontavam para mim. É ela, é ela, é ela. Nessa altura da nossa viagem, eu já via tudo embaçado. Parecia mais foragida que desaparecida. Os guardas, confusos, tentavam conversar comigo, mas eu só ouvia ruídos abafados. Como se estivesse dentro da água tentando conversar com alguém que estivesse do lado de fora. Tentaram me fazer sentar, mas senti um tremor, temi, voltei a agarrar o apoio de metal. Sua materialidade não me era mais compatível, entretanto, não me era mais familiar. Eu estava desaparecendo, tinha entendido que sim, dissolvendo e evaporando, aos poucos, mas bem visível a olho nu, aos olhos daquelas pessoas todas. O guarda tentou pegar na minha mão, mas não havia mais mão. Ouvi o sinal sonoro de portas sendo fechadas, os passageiros se dispersaram pelo vagão que voltou à normalidade. O trem partiu para mais uma estação.
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Marina Yukawa é jornalista formada em 2017 pela ECA-USP , vencedora de várias edições do Concurso Literário da Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares, é autora da Terra Redonda, com contos publicados nos livros "Isto não é Direito" (2021), "Natureza degradada" (2022), "Colapso: narrativas do Antropoceno" (2023) e, o mais recente, "Os sacramentos" (2023), do qual também é organizadora, em parceria com Guilherme Purvin.
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