Para autor, não se pode mais admitir silenciamento das raízes africanas e asfixia de autores negros
Na esteira de protestos, manifestações e debates sobre a onda de ódio racial que assola o país e boa parte do mundo, com potentes reflexos nos Estados Unidos, especialmente após a morte de George Floyd, um tema foi pouco lembrado e carece de mais reflexões: a literatura negra brasileira.
Que medo é este de colocar o assunto na mira das atuais discussões? Sob o aspecto estético racial, sendo a literatura o corpus cultural de um povo, sobretudo quando esse povo é nitidamente africanizado, pensar no asfixiamento de nossas narrativas, pelo ponto de vista literário, é o mesmo que supor que essa literatura precisa ser ignorada, apagada, eliminada dos catálogos e dos livros didáticos.
Esse apagamento sempre teve um cunho ideológico, diga-se de passagem, pois se constitui em uma espécie de política de Estado, manifestada desde a Colônia e o Império, mas notoriamente adotada na República, desde o seu nascedouro, como instrumento próprio para silenciar e invisibilizar, de um lado, autoras e autores negros, o seu legado, e, de outro, suas raízes africanas e produções intelectuais.
Com esse propósito, muitos de nossos autores foram ignorados ou embranquecidos pelo sistema, pela história oficial ou pela academia, incluindo a Academia Brasileira de Letras (ABL), de onde se esperava encontrar o apoio necessário à expansão das ideias e ideais daqueles que também ajudaram a construir verdadeiramente a identidade da nação.
Da mesma forma que não se estranhou a foto que revelou a face de um Machado de Assis negro, não se construiu dentro da ABL a base de votos da candidatura de Conceição Evaristo para ocupar, pela primeira vez, enquanto escritora negra, uma das 40 cadeiras da casa.
Trata-se de situações pontuais e presentes, é verdade, mas se fizermos uma digressão no tempo, percebemos que o racismo na literatura negra brasileira é muito mais profundo e criminoso do que se parece.
O caso mais notório de apagamento das raízes negras no país é o de Machado de Assis, maior escritor da literatura brasileira, festejado recentemente nos Estados Unidos após nova tradução em inglês de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, edição esgotada em apenas um dia.
Em uma viagem pelas letras ao longo da história, podemos constatar a exclusão ou embranquecimento de autores como Henrique Dias, o primeiro negro letrado do país, no século 17; padre Antônio Vieira (1608-1697), o brilhante escritor e orador, nascido em Portugal, trazido ao Brasil ainda menino, descendente de uma escravizada africana.
Há ainda o surpreendente caso de Rosa Maria Egipcíaca (1719-1778), da Costa do Marfim, que chegou ao Brasil após ser capturada pelo tráfico negreiro. Autodidata, escreveu “Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas”, o mais antigo livro criado por uma mulher negra no Brasil. Tido como herético pela Igreja, o livro acabou destruído pela Inquisição portuguesa.
O fim de Rosa Maria Egipcíaca permanece um mistério. Levada para Portugal, foi presa pelo Tribunal do Santo Ofício, sob acusação de se autoproclamar santa e alegar ter dons espirituais —segundo relatos, seus rituais misturavam ritos católicos e africanos, reunindo dezenas de fiéis. Não há registros de sua morte.
Temos ainda Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), carioca, filho de português com uma negra angolana, poeta que popularizou o lundu e pertenceu à arcádia de Lisboa; Silva Alvarenga (1749-1814), um “filho de negro músico de profissão”, conforme sua biografia. Alvarenga estudou em Coimbra e escreveu “Glaura” (1799), poema considerado erótico.
Depois veio Paula Brito (1809-1861), contista, poeta, tradutor e editor que publicou os primeiros textos de Machado e o primeiro romance brasileiro, “O Filho do Pescador” (1843), escrito por outro negro genial e esquecido, Teixeira e Sousa (1812-1861).
Seguem-se Gonçalves Dias (1823-1864), autor de “Canção do Exílio”, nome forte do romantismo que dispensa apresentações, mas que todos precisam saber que era negro; Maria Firmina dos Reis (1822-1917), primeira romancista negra do Brasil, autora de “Úrsula” (1859).
Nascida no Maranhão, era prima, por parte de mãe (uma ex-escravizada), de Francisco Sotero dos Reis (1800-1871), poeta, professor, gramático e autor de “Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira” (1866-1873), fruto da sua experiência docente.
E não paramos por aí. Chegamos, então, a Luís Gama (1830-1882), poeta, tribuno e advogado, filho da lendária Luísa Mahin, da Revolta dos Malês, na Bahia; Cruz e Sousa (1861-1898), pai da escola simbolista e atuante abolicionista, mas injustamente referenciado como “poeta branco”.
Retrato de Luís Gama - Reprodução
Auta de Souza (1876-1901), poeta espiritualista aclamada por Olavo Bilac (1865-1918), tinha sangue negro por parte de mãe e morreu do vírus da gripe espanhola, assim como o presidente negro Rodrigues Alves (1848-1919).
Também com ligações com o mundo político, podemos destacar José do Patrocínio (1853-1905), poeta, romancista, jornalista e ativista, modernizador da imprensa no Brasil e membro fundador da Academia Brasileira de Letras; e Domício da Gama (1862-1925), contista e crítico literário, fundador da ABL ao lado de Patrocínio, embaixador em Washington e ministro das Relações Exteriores. O escritor português Eça de Queiroz (1845-1900) o tratava, preconceituosamente, de “o mulato cor de rosa”.
Nesta lista, não podemos deixar de citar o grande Lima Barreto (1881-1922), e pela memória do autor de “Clara dos Anjos” chegamos a Mário de Andrade (1893-1945), um dos principais expoentes da literatura moderna; Solano Trindade (1908-1974), alcunhado o poeta do povo; e Ruth Guimarães (1920-2014), tradutora, jornalista e, acima de tudo, romancista de “Água Funda” (1946), que chegou a pertencer à Academia Paulista de Letras, a mesma que nunca aceitou nos seus quadros Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a festejada escritora de “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” (1960), livro traduzido para 16 idiomas e que circulou em 46 países.
Nessa galeria mais que ilustre, constatamos outros autores de vital importância que caíram no esquecimento, como o romancista e poeta Jorge de Lima (1893-1953), o dramaturgo e romancista Romeu Crusoé e a mineira Anajá Caetano, que publicou “Negra Efigênia: Paixão do Senhor Branco” (1966). De Crusoé e Caetano quase nada se sabe, como data de nascimento e morte.
São tantos os nomes desprezados e apagados de nossa literatura negra que chegamos a imaginar um atentado contra esses autores e suas obras de denúncia racial ou voltadas às raízes africanas.
E nem mencionamos nossos contemporâneos, a começar por Conceição, nossa já veterana, com destaques como Ana Maria Gonçalves, Paulo Lins, Joel Rufino dos Santos, Nei Lopes, Domínio Proença Filho, Martinho da Vila e nomes da nova geração, com Jeferson Tenório, Eliana Alves Cruz, Itamar Viera Júnior, Giovani Martins, Jarid Arraes, entre muitos outros.
Não é concebível, com tudo isso, que se continue a ignorar tantos talentos, tanta produção festejada e premiada, muitas delas recordistas de vendas, traduzidas para uma série de idiomas e países.
Como destaquei no começo deste artigo, que medo é esse que a indústria do livro tem de autoras e autores negros brasileiros? Não podemos mais admitir que continuemos a ser asfixiados até a morte, ou atirados do alto de prédios, como anjos sem asas. A literatura negra brasileira precisa respirar urgentemente.
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Tom Farias é jornalista e escritor, é autor da biografia "Cruz e Sousa: Dante Negro do Brasil" e do romance "O Crime do Rio Vermelho", entre outros livros
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