A história da doação da fazenda do escritor Raduan Nassar recusada pela USP
Messias Eugênio Miranda Barboza, no site Conselho Gestor da Fazenda Lagoa do Sino
Em 8 de novembro de 1984, a Fazenda Lagoa do Sino foi adquirida por Raduan Nassar. Integrante da Fazenda Santa Albertina, de propriedade de Renato Rocha Miranda, a Lagoa do Sino já era um belo local, mas a infraestrutura nem passava perto do que há hoje, em pleno funcionamento. Tendo iniciado logo em seguida as atividades, já com o apoio de Newton Santos Correa, Raduan só viu resultados positivos no início dos anos 1990.
Ao longo de todo esse período, a produção agrícola se concentrou nas culturas de arroz, na década de 1980, eventualmente aveia, e milho, soja, trigo e feijão de forma mais permanente. Houve a atividade pecuária, sempre com o cuidado de trabalhar somente com gado registrado; mas essa atividade perdeu força com o tempo, restringindo-se a poucas cabeças já no momento da doação, em 2011.
Destacam-se alguns fatos na história da condução das atividades na Lagoa do Sino. Raduan e Newton recorreram algumas vezes aos conhecimentos de agrônomos e outros profissionais, mas, diante de opiniões e orientações sempre divergentes, essas consultas foram substituídas por conversas junto aos produtores rurais da região. Raduan já afirmava nessa época que acreditava no empirismo, daí a busca por experiências concretas, vividas pelos produtores, o que o influenciou durante todo o tempo as atividades ali desenvolvidas.
Sempre houve uma equipe de 10 trabalhadores, sob a liderança de Newton, que recebiam os melhores salários da região. Nunca se admitiu funcionário ilegal, todos receberam por doação de Raduan seu lote em Campina do Monte Alegre. Todos tinham residência na Lagoa do Sino. Jamais existiu contra Raduan uma ação trabalhista, disso todos nós sentimos orgulho. Todos os dias havia reuniões entre 7 e 9h, fosse para planejamento da produção, para distribuição de tarefas, ou para definir os locais de construções e instalações.
Sobre as construções é possível, ainda hoje, constatar o rigor na execução e a qualidade do material utilizado, traços conhecidamente marcantes de Raduan Nassar.
Em 2003, iniciei minha colaboração como contabilista na Lagoa do Sino e propus alguns controles e formas de apuração detalhados para Raduan, que, para meu espanto na época, me disse serem dispensáveis, pois pensava em coisas simples, com seus controles e cadernos manuscritos... Mais tarde pude entender. O rigor daqueles controles simples e os objetivos daquela produção já estavam muito bem definidos: não eram para acumulação pessoal.
Em 2005, Raduan começou a pensar no destino que poderia dar para a Fazenda Lagoa do Sino. Dois anos depois, em 2007, procurou o amigo professor Antonio Angarita, demonstrando seu interesse em doar a Fazenda Lagoa do Sino, para que nela se instalasse um campus universitário, e que promovesse o desenvolvimento da Agricultura e da Educação Pública na região.
Uma vez encaminhada formalmente a intenção da doação para a Universidade de São Paulo (USP), só houve uma resposta, provocada por um pedido de informação de Raduan, após um ano: a proposta estava sob “análise”. Remetendo-se ao histórico de morosidade no trato com o poder público e sendo até aconselhado por amigos a abandonar a ideia, Raduan insistiu e fez um contato com outro amigo, o professor Carlos Vogt que, atenciosíssimo e prestativo, ocupava a presidência da Fapesp. Desse contato surgiram as tratativas com a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz -Esalq, ligada à USP e localizada no município de Piracicaba.
De 2008 a 2009, foram realizadas diversas visitas, tendo comparecido o diretor da Esalq, professor Antonio Roque Dechen, bem como professores e estudantes daquela Instituição. Numa das ocasiões, um ônibus com aproximadamente 40 estudantes esteve na Lagoa do Sino para que os mesmos conhecessem o provável novo campus. Após as visitas e a apresentação de um breve esboço do que seria um projeto de implantação, a Congregação da Esalq aprovou o recebimento da Lagoa do Sino por doação.
Em 2009, diante do silêncio para a concretização da doação, Raduan Nassar encaminhou correspondência para a diretoria da Esalq estabelecendo o prazo de 30/11/2009 para que aquela instituição se manifestasse, sob pena de considerar extinto o interesse. No dia seguinte, ao término do prazo, estiveram dois professores na residência de Raduan em São Paulo, para lhe entregar uma carta-resposta, antecipando que a notícia não era boa.
A carta, que não foi lida no momento da visita, informava a inviabilidade da instalação de um campus universitário, por duas razões: a) Raduan Nassar exigia cursos de graduação e uma área construída de aproximadamente 7.500m², a Esalq propunha para a Lagoa do Sino as atividades de pesquisa e extensão; b) A Esalq alegou que o Governo do Estado, pela Secretaria da Educação, não dispunha de recursos para a implantação do campus, visto que a própria Esalq pleiteava há 15 (quinze) anos os recursos para a construção de um Centro de Eventos, sem que tivesse sucesso.
Até hoje não entendemos os motivos da recusa, visto que o Estado de São Paulo se proclama como o estado “rico”, “locomotiva” do país. Talvez haja explicação na contraditória falta de investimento e atenção para a Educação por parte do governo estadual, constatada sucessivas vezes no trato com professores e estudantes, inclusive na história recente. Diante dessa negativa, que abalou a saúde física e emocional de Raduan, passamos a pensar noutras possibilidades.
Tendo nascido e vivido em São Bernardo do Campo, inclusive tendo militado no movimento estudantil e lutado por uma universidade pública no ABC, no final da década de 1980, me entusiasmava com a construção da UFABC - Universidade Federal do ABC, e propus ao Raduan diversas vezes que procurasse uma instituição federal, como a Universidade Federal de Viçosa, conhecida, sobretudo, por sua ligação com a Agropecuária.
Nesse momento, Raduan estava incrédulo e desgastado diante da infrutífera espera e realmente descartava qualquer negociação com o poder público. Também nesse momento, diante da circulação da notícia sobre o fracasso da negociação com a Esalq, surgiu uma proposta de compra da Lagoa do Sino. Intuitivamente Raduan a negou. Entrei em contato com o gabinete da presidência da Embrapa, em Brasília, informando a intenção da doação, o resultado permanece o mesmo até hoje: nenhum retorno.
Na véspera do feriado de 21 de abril de 2010, estive em Diadema, numa ONG em reunião de trabalho com a jornalista e escritora Marilene Felinto, onde também estava o jornalista Sergio Alli. Marilene é amiga de Raduan há bastante tempo. Questionado sobre o andamento da doação, informei que havia fracassado. Inconformada, Marilene ligou para o Raduan dizendo que poderia levar a proposta para o Governo Federal, e que o Sérgio Alli poderia ser o portador.
Costumo dizer que aí valeu a ousadia da Marilene, pois o Raduan desistiu de recebê-los para tratar do assunto, logo após ter concordado. Marilene e Sérgio chegaram no endereço de Raduan em São Paulo meia hora depois, para colher informações a serem levadas para Brasília. Incrédulo, Raduan avisou: se não houver nada em 90 dias, aceito a proposta de compra. No feriado de 21 de abril de 2010, o amigo Sérgio Alli apresentou ao então chefe de gabinete da Presidência da República, Gilberto Carvalho, a oferta de doação da Fazenda Lagoa do Sino. Na manhã seguinte, Gilberto Carvalho levou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva a proposta, que teve a imediata e convicta resposta: “Como fizeram isso com ele? Vamos fazer!”.
O presidente Lula determinou que o assunto fosse encaminhado ao ministro da Educação Fernando Haddad, que no mesmo dia ligou para Raduan informando o interesse do Governo Federal em realizar o projeto. Ainda surpreso, Raduan questionou o então ministro sobre a exigência que havia feito para a Esalq: 7.500 m² de área construída e a instalação de um campus universitário com cursos de graduação. A resposta fez brilhar os olhos e alargou o sorriso do doador: “Raduan, com 7.500m² geralmente fazemos Escolas Técnicas, um campus deverá ter entre 25.000m² e 30.000m²... e o presidente já afirmou que quer realizar esse projeto”. Em seguida, o ministro Fernando Haddad informou Raduan Nassar que o campus seria uma expansão da UFSCar, visto que na região já se encontrava em funcionamento o campus de Sorocaba.
Após exatos 30 minutos do encerramento da ligação, entrou em contato o reitor professor Targino de Araújo Filho, para iniciar as tratativas com Raduan. Na primeira semana de maio de 2010, recebemos a primeira visita de uma comissão chefiada pelo Reitor Targino. As boas impressões foram recíprocas, a equipe da UFSCar com a beleza e o cuidado da Lagoa do Sino, e nós com a simplicidade e o entusiasmo dos “doutores”.
Em outubro de 2010, em nova visita e já com uma comissão e implantação formada, recebemos novamente a equipe da UFSCar, já com o Projeto de Implantação elaborado, tendo sido elogiado bastante pelo Raduan. Nesse dia aconteceu para mim um dos momentos marcantes de todo esse processo: ao elogiar o projeto de implantação do Campus, Raduan ouviu de um dos professores que a grande motivação da equipe era o seu gesto de desprendimento. A resposta de Raduan foi: “Apenas devolvo para a comunidade o que dela recebi”.
No final de 2010, uma verdadeira “novela” se iniciou, desta vez me deparei com uma questão tributária que não impediria a doação, mas que demonstrou o quanto nosso país ainda patina no desenvolvimento da Educação: por conta da legislação tributária, ao doar a Fazenda Lagoa do Sino, mesmo tratando-se a donatária (UFSCar) de uma instituição pública de ensino, Raduan teria que arcar com o pagamento do Imposto de Renda sobre o Ganho de Capital. O montante: R$ 483.733,32. Esse valor foi pago em 30/03/2011.
Não há até o momento legislação que dê incentivo fiscal para quem faz doações para instituições de Educação Pública. Um projeto nesse sentido pode ser encaminhado ao Congresso Nacional em breve pelo deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP). Antes disso, em 3 de fevereiro de 2011 foi assinada no Tabelionato de Angatuba a primeira escritura de doação da Fazenda Lagoa do Sino, que compreendia as duas glebas de terra, totalizando 643 (seiscentos e quarenta e três hectares). Por conta da produção em andamento, foi estabelecido o prazo de 6 meses para que Raduan realizasse a colheita, bem como a comercialização dos produtos.
Foi nesse intervalo que foram feitas as rescisões trabalhistas dos colaboradores ligados à Raduan Nassar, e que seriam admitidos pela FAI-UFSCar. Diante da possibilidade de redução de ganhos na transição dos trabalhadores devido à diferentes Convenções Trabalhistas, participamos diretamente da negociação para que os mesmos mantivessem as condições vigentes durante o vínculo com a Lagoa do Sino. Todos, com exceção de um colaborador que permanece trabalhando com Raduan, passaram a integrar equipe que garante a produção da Fazenda Lagoa do Sino, ainda liderados por Newton Santos Correa.
Em 3 de agosto de 2011, foi assinada a escritura de doação de todo o maquinário, móveis, equipamentos e instalações; e transferida a posse definitiva da Fazenda Lagoa do Sino. Daquele momento até hoje muita coisa aconteceu, o impacto da implantação do campus já transformou a realidade do “Território Lagoa do Sino”, positivamente.
Em setembro e em dezembro de 2013, foi realizado o 1º Fórum de Desenvolvimento de Campina do Monte Alegre (município mais próximo ao Campus Lagoa do Sino), organizado pela sociedade civil e já com as presenças do diretor do campus, professor Manoel Almeida, e do professor Waldir Cintra, iniciando ali uma parceria e um diálogo que certamente vão perdurar. Concluo este texto num momento decisivo: está em plena apuração a eleição para a nova reitoria da UFSCar. Ainda não sei o resultado final.
Vou repetir aqui uma história que já contei no Campus Lagoa do Sino: numa ocasião reclamei ao Raduan que havia comprado uma pequena chácara, e que nela fiquei sem duas grandes e lindas árvores, por alguns metros elas estavam na propriedade vizinha. Mostrei as fotografias e, após um longo silencio, o Raduan me disse: “Messias, as árvores também são suas...” Sem entender, perguntei o porquê, e a resposta foi: “você pode vê-las...”
Seja qual for o resultado das eleições de hoje, para o sempre reitor professor Targino, para o diretor professor Luiz Manoel, para os professores Nancy, Alberto, Gustavo, Waldir, Alexandra, Ângelo, Ricardo, Néocles, Mauro Rocha Cortez e tantos outros, professores e administrativos que não vou conseguir mencionar agora; fica o abraço afetuoso! Afirmei, num momento de perda e de ganho em minha vida, que hora somos ponte, hora somos ilha... Pioneiros de um belíssimo projeto, vocês serão sempre pontes, e também são árvore, com raiz, galhos e frutos fortes, todo respeito e admiração.
Nos encontraremos nas lutas por cidadania e educação, com o mesmo entusiasmo e a certeza de que seus pares, seus familiares, esses sentirão verdadeiro orgulho por suas missões. Hoje dedico esse texto e todas as energias a vocês. Aos estudantes e protagonistas desse sonho do Raduan e de todos nós, ainda que alguns insistam em tratá-los como a-lunos (sem luz???), vocês são a chama, não se apaguem, pois existem duas certezas: nenhuma força é capaz de sufocar essa energia que só vocês trazem no peito, e esse projeto Lagoa do Sino pertence sobretudo a vocês, todos nós podemos ver.
Ao RADUAN: você que detesta “CAIXA ALTA”... a gratidão de sempre, faltam palavras, as que vem e o nome aqui são minúsculos mesmo.
messias eugênio miranda barboza
30 de junho de 2016
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Messias Eugênio Miranda Barboza é parceiro de Raduan Nassar há duas décadas, atuando como seu contador e administrador de seus bens.
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Nota do editor da Terra Redonda, Sergio Alli: Raduan relatou-me, na época, que a recusa da Esalq à doação da Fazenda Lagoa do Sino, em 2009, foi determinada pelo governador José Serra. Ele teria sido informado pelo então presidente da Fapesp, Celso Lafer, que Raduan havia doado ao MST (Movimento Sem Terra) alguns terrenos em um loteamento em Campina do Monte Alegra, cidade próxima à Fazendo Lagoa do Sino. A Fapesp entrou na história porque a Esalq tinha solicitado à instituição o financiamento do projeto, que foi negado.
Sérgio Alli é autor do livro "13 anos de Lula e Dilma"
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