Pato Papaterra, no livro 40 anos do glorioso Vai Quem Quer, conta inúmeras peripécias do Rei Piriri, o mais improvável Momo da história do Carnaval de rua paulistano.
Sergio Alli, editor da Terra Redonda.
Para o Carnaval de 1984, decidimos que o bloco deveria incrementar seu visual, deixando-o mais colorido e chamativo, com alegorias e fantasias; tinha que ficar bonito. Resolvemos fazer algumas camisetas para ficarmos elegantes.
O Riba era um dos produtores do Teatro Lira Paulistana, ali na Teodoro Sampaio em frente à Praça Benedito Calixto, no mesmo ponto em que o bloco se concentrava antes dos desfiles. Para quem não sabe, o Lira Paulistana foi onde rolou um importantíssimo movimento cultural, principalmente de música, no começo dos anos 80, com uma gravadora independente que lançou Arrigo Barnabé (também frequentador do bar do Vavá), Itamar Assunção, grupo Rumo, Premeditando o Breque e tantos outros artistas geniais.
Foi lá que as primeiras camisetas do bloco foram feitas. Ficaram demais. Mas, como sempre ao longo daquele século XX, não sobrou grana nenhuma para a agremiação. Só o trabalho e o prazer de vestir a camiseta do glorioso VQQ. E isso, ah, isso não tem preço.
Também resolvi pôr a mão na massa e fazer uns adereços de papelão para os foliões carregarem no desfile. Já tinha um hidrante de papelão feito para uma peça de teatro da faculdade. Então, pensei em mimetizar o bloco na paisagem urbana, fazendo
objetos que só se vê nas ruas: semáforos, orelhões, hidrantes, placas de trânsito, fontes d’água, tudo feito de papelão, cola branca e fita crepe; o mais barato possível.
A ideia deu mais ou menos certo porque os foliões os carregaram na boa, brincando com eles e embelezando tudo. Mas os adereços só desfilaram uma noite. As pessoas os levaram para casa pensando que eram brindes, talvez, só sei que sumiram.
Nesse ano, porém, ganhamos reforço de real valor. O Ribamar era o dono da Kombi do Lira Paulistana e nos ofereceu a dita cuja para nossos desfiles. A ideia era colocar, em cima da capota no bagageiro da Kombi, um Rei Momo. Seria nosso primeiro carro
alegórico motorizado.
Mas quem assumiria o papel de rei, gordo como deve ser um rei Momo? O Fernandão, o bedel, responsável pela gráfica da escola e pau pra toda obra, não toparia. Além do mais poderia afundar a capota. A solução foi chamar o Piriri.
Para quem não conheceu a figura, devo apresentá-lo retornando no tempo. Eu o conheci primeiro com a alcunha de “Neguinho”, no Supletivo do Colégio Santa Cruz, em 1978. (Esclareço ao leitor mais jovem, que não viveu o século XX, que na época eram usuais apelidos supostamente carinhosos como esse, mas que tinham um substrato de preconceito e discriminação racial, ainda que isso não fosse percebido por nós). Ele não era aluno, funcionário ou professor.
Apareceu um dia num ensaio de teatro do Grupo Marerê, chapado que só ele, apresentado pelo Paulinho, um ex-aluno maluquete. Estávamos ensaiando uma peça em que precisávamos de um São Benedito para ser carregado num andor. Quando vimos aquele candidato a ator de tamanho diminuto, logo concluímos que ele tinha o perfil ideal para o papel. Ele aceitou de cara e se transformou divinamente num santo de barro; ficava durinho, durinho no andor. Sucesso total! Jamais vi alguém representar tão bem o São Benedito.
Passados alguns anos, encontrei o tal Paulinho, amigo dele, e perguntei-lhe sobre o “Neguinho”.
“Ele morreu!” disse o Paulinho taxativo. “Sofreu um acidente de carro e morreu”!
Porra! Fiquei triste pra caramba; chorei aquela morte. Espalhei a notícia pra Deus e o mundo. O “Neguinho” tinha morrido! Enterrei o cara na memória.
No entanto, seis ou oito meses mais tarde, encontrei, no maldito Sujinho da Vila Madalena, o cara com o rosto todo fodido, estourado e remendado, como eu tinha ficado no acidente da Bahia.
“Puta, Neguinho! Você tá vivo! Pra mim, você tinha morrido!” deixei escapar, tomado de felicidade.
“Pois é, Pato. Fala pro Paulinho parar de falar que eu morri, porque tô vivo; vivo! Eu quase morri, só isso!”
Senti uma identificação com ele com aquela cara estourada.
“Nós nascemos de novo, Neguinho!” falei.
Ele respondeu: “É. Mas agora eu não sou mais Neguinho. Eu sou o Piriri!”.
Juro que isso aconteceu antes do filme Cidade de Deus, com a história do Dadinho-Zé Pequeno. De fato, o “Neguinho” havia morrido. Piriri era outro cara. Vestia um casaco de couro, colares no pescoço, uma calça Lee apertada e desbotada e óculos escuros,
parecia um cantor de rock.
Parecia?!
Mais que cantor, era o líder de uma banda de rock da pesada, cantando canções compostas por ele. O cara fazia sucesso na Vila e queria gravar um disco, “um LP independente”. Gravou dois. Figura histórica. Quem quiser vê-lo cantando entra no Youtube que vai achar: Piriri. Ou Piriri da Vila Madalena. Vale a pena. Dizem que depois ele morreu de verdade, parece que com aids ou overdose ou uma doença misteriosa, sei lá. Mas eu não acredito. Pra mim, o Piriri jamais morrerá, é eterno, igual ao Raul Seixas e o Elvis: um verdadeiro mito. Espero encontrá-lo de novo um dia por aí, vivo.
Pois, então, eu não podia vacilar. Experiência desfilando num andor o Piriri já tinha de sobra. O porte físico dele era perfeito para ser o nosso rei Momo, pequeno e magrinho. E, é claro, ele aceitou. Cartaz era o que queria, sendo um pop-star.
Fiz a coroa do rei, capa do rei, cetro do rei, tudo como manda o figurino bem fuleiro. Amarramos um trono no bagageiro da Kombi para ele reinar. E reinou. Acho que o Piriri acreditou mesmo ser um rei nobre e digno. E não era? Alguém mais talhado
para isso, não conheci. Se a monarquia voltasse...
No sábado de Carnaval daquele ano, fizemos um desfile apoteótico com o rei Momo-Piriri, inesquecível, em cima da Kombi. Além disso, para maior glória de seu reinado, um súdito – não lembro seu nome, era um cara da Tom Maior – conseguiu desenvolver finalmente o hino vaiquenqueriano que o Valtinho tinha composto em 1981.
Agora seria cantado assim para todo sempre:
“Vai, vai, vai. Vai quem qué.
Entra bicha, entra hóme,
Entra véia, entra muié!”.
A dificuldade foi fazer o bloco inteiro cantá-lo em coro, pois na época não tínhamos microfone ou outra maneira de propagar a voz; tinha que ser no gogó, no berro mesmo. Quando conseguíamos fazer o pessoal da frente cantar a música, a turma
que seguia atrás já cantava outra completamente diferente. Às vezes, três ou quatro músicas eram cantadas ao mesmo tempo: uma na frente, outra no meio e outra no fundo; uma zorra só. Mas era bonito.
A traição real e o xis do porquê
Nesse ano de 1984, no desfile de domingo, o bloco iria de novo arrasar. Havíamos sido convidados para abrir o desfile oficial na Teodoro Sampaio, o organizador do evento era ninguém mais ninguém menos que o nosso conhecido Vavá. Ele era malufista. Tinha péssimos aliados políticos e conseguiu na Prefeitura organizar
aquela festa – distribuiria até troféus. E nos livrou de toda burocracia na então Administração Regional.
Pela primeira vez, tínhamos um horário a cumprir. A programação do evento era extensa, com algumas escolas de samba para desfilar, não podíamos dar mancada. Só que o nosso rei Momo e a Kombi não apareciam. A hora passando e nada de chegarem.
Ciosos das nossas responsabilidades, decidimos descer para não atrasar o desfile. Fodam-se os dois. Ao entrarmos na passarela sambando e cantando nosso glorioso refrão e outras marchinhas conhecidas, convidamos a galera das calçadas a entrar na brincadeira conosco; por sorte, a bateria estava boa naquela noite. A grande maioria aderiu, formando uma massa que cobria um longo quarteirão. Foi a maior aglomeração de foliões que o bloco conseguira reunir até aquele dia. Apoteótico! Magnífico!
Descemos a Teodoro da esquina da Fradique Coutinho até a Pedroso de Moraes, onde havia a área de dispersão. Ali, devíamos parar e sair da pista porque uma escola de samba vinha descendo atrás. Mas estávamos tão empolgados e felizes com nosso sucesso que resolvemos continuar brilhando; demos meia volta e passamos a subir, desfilando no sentido contrário, na contramão, em rota de colisão com a escola que descia.
A confusão foi enorme. Imagine. Os fiscais da prefeitura desesperados faziam sinais para que saíssemos da avenida. Mas como? Sinais não seguram uma massa decidida a brincar. Então, quando chegamos quase a um cuspe de distância da primeira ala da escola de samba que descia, o bloco encontrou uma “saída pela direita!”: passou por debaixo da corda, pedindo licença à plateia para virar na Mourato Coelho em direção à Rua dos Pinheiros, escapando por um triz de uma inédita trombada entre
agremiações momescas. A passarela estava enfim livre para a escola de samba passar.
No dia seguinte, já concentrados na Benedito Calixto para novo desfile, quem aparece vestido com a roupa que eu fiz de rei Momo? O Piriri. Fiz-me de puto com ele, só pra zoar: “Porra, Piriri! Ficamos te esperando ontem. Onde é que você se meteu, cacete?”
Para que se entenda onde o Piriri se metera, é preciso salientar que começava naquela época o movimento das “Diretas Já!”. Por isso, as pessoas sentiam necessidade de sair às ruas para se manifestarem e o Carnaval era (e sempre foi) muito propício a isso. Surgiram até alguns blocos em São Paulo naquele ano. Cheguei
a pensar que finalmente o Carnaval de rua fosse estourar na cidade como acontece nos dias de hoje no século XXI. Mas foi pura ilusão, tudo fogo de palha no ano das Diretas-Já.
De todo modo, um desses blocos de vida curta foi o “Sacuda a Vila”, formado por músicos da pesada, alguns Novos Baianos que frequentavam o Sujinho e outros bares da Vila Madalena. O samba enredo deles era muito bom. Vão abaixo uns versos (os
únicos que lembro, uma pena):
“Que porra é essa? exclamou o faraó.
Tira mão das ataduras, (...?) da dentadura,
Se não eu viro pó!”...
Pois onde se meteu o Piriri? “Eu fui o rei Momo do Sacuda a Vila na Teodoro, ontem. Fui em cima da Kombi.” – ele me confessou.
Porra, claro que bronqueei pela traição, afinal eu tinha feito a roupa dele. E ele respondeu:
“Pô Pato! Eu sou rei, mas tenho fome. Eles me pagaram um xis-salada”.
Estava explicada a traição: o rei estava faminto.
Então, para que não ficasse nu, paguei para ele outro xis-salada naquela segunda-feira e outro xis na terça gorda, e o Piriri foi o nosso rei Momo vestido o resto do Carnaval. Era o VQQ se profissionalizando.
Sobre a Kombi, não me lembro se ela voltou a sair conosco. Acho que a Banda Sacuda Vila tocava em cima do bagageiro. Só sei com certeza que o Ribamar foi viver na Espanha, em Barcelona, e só retornou em 2016 ou 17, um pouco mais velhinho, ainda muito gente fina, como sempre.
____________
Pato Papaterra é o carnavalesco do Grêmio Recreativo Maternal do Samba Vai Quem Qué, fundado em 1981, como ele conta em livro da Terra Redonda.
Comments