A imagem abaixo, boa de admirar, remete aos dípticos da Antiguidade e é formada pelas capas dos livros O sono de Cronos e SQUIRT, de Telma Scherer, reeditados agora pela Terra Redonda. SQUIRT foi semifinalista do prêmio Oceanos de literatura.
O instigante design de Tina Merz, que também rediagramou os miolos dos livros, deu novos sentidos para a ilustração de fundo, uma tela de autoria da própria Telma Scherer.
Em um encontro com amigos via Instagram, Telma interpretou dois de seus poemas:
sem título (de "O sono de Cronos")
Caguei verdaccio,
bem no meu aniversário.
O cago saiu assim puro, malcheiroso, uma mistura
perfeita entre o amarelo ocre e o preto de marte.
As zonas de sombra, onde a merda se concentrava,
contrastavam com a aoréola de luz
que circundava a figura.
O fundo está perfeito, pensei.
Tudo eficazmente delineado.
Se precisasse disso numa tela...
E para que seria?
Por que isolar assim arte e vida?
Caguei verdaccio,
uma verdadeira base
para a primeira camada da obra prima.
Assim, de repente, bem no meu aniversário.
Num ato radical de desapego,
devo puxar a descarga.
Essa é a primeira vez em que vejo
um verdaccio alla prima,
paradoxo pictórico,
completo, perfeito, pintura de musgo,
tela diarreia.
REFLEXÕES SOBRE O ECLIPSE (de "SQUIRT")
Só se pode beber conhaque
e hidromel. Meu coração
é um velho reclamando
que não foi amado a contento durante um sem número de orgasmos, aos quais
ele não compareceu. O fogo consome as folhas de mirra
e o incenso de lavanda, ao lado.
O fogo dói.
Alguém acode o menino
que se cortou, sem querer.
Melhor pensar com o clitóris
do que com esse coração
que só sabe reclamar. As pernas dançam ao som de um groove
que não cumprimenta ninguém
na festa. Na caixa do CD
eles deixaram autógrafos,
e há um que diz: Telma,
use esse som para amar.
Tão antigo. Devo amar
com o clitóris, ou, talvez,
com a razão. O coração
só cobra
lugar na agenda,
carícias de mensagens,
entrevistas, solicitações entregues há dias
e nunca respondidas.
Parece que o vento
vai derrubar os pés
mais altos do jardim.
E sobrarão só os ossos
que não usam esse som, Telma, senão para se completar em tijolos e tijolos
e procuram argamassas
mais ardidas
sem querer permanecer.
Os orgasmos fogem, se sucedem, um após o outro, é vendaval, porque o clitóris dança
do seu próprio groove
e não há quem fique
para tirar o pó
da manhã, depois.
Eles se cortam.
Já sangraram.
Cansam.
E estão sempre apressados,
os pais carentes, os cães esperando por comida, em casa, as reuniões marcadas
e as sombras das mães, as culpas por terem revirado os olhos procurando a mulher perfeita,
e de repente encontraram
estrias, e pernas
prontas para um pouco mais.
Use esse som
para se contorcer, Telma,
ao luar, seus ais,
sem pensamentos sérios,
nua de cismas e convites.
Diga: “Entre, moço,
fique à vontade”.
As mães deixaram
as mãos impressas
nos poros dos garotos,
e eles preferem
fechar o portão
depois de levantar.
Eu, sabedora das lições,
bem pouco lúcida,
posso então ligar o som,
beber conhaque
e hidromel.
Só se deve beber conhaque e hidromel.
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