Guilherme Purvin, na Revista PUB
O show de despedida de Milton Nascimento e a morte de Gal Costa inevitavelmente nos trazem a sensação de que uma geração está se despedindo - a geração mais brilhante e criativa da história da Música Popular Brasileira.
Começo esta crônica com uma referência aopovo amonita, com a finalidade de chamar a atenção a um de seus deuses: Moloch. O Deuteronômio declarou que qualquer israelita ou estrangeiro residente em Israel que entregasse um dos seus filhos a Moloch, teria que ser executado por apedrejamento. A expressão "entregar o filho a Moloch" significaria precisamente sacrificar uma criança, atirando-a numa fornalha instalada no corpo de uma grande estátua com a representação daquele deus com cabeça de boi. Moloch seria um deus devorador de seus próprios filhos.
Rabbath, localizada cerca de 32 km a leste do Jordão, era a principal cidade do povo amonita, adorador de Moloch. Ali poderia ser encontrada uma cama de 4m de comprimento por 1m80 de largura. As proporções dessa cama sempre chamaram muita atenção e, ao que parece, teria pertencido a Og ("gigantesco", em hebraico: עוג, cogˈʕoːɡ; em árabe: عوج, cogh[ʕoːɣ]). Og, rei dos amonitas, foi o último sobrevivente dos refains, raça de gigantes hoje extinta, e teria sido morto por Moisés.
O mito de Moloch se assemelha ao de Saturno, titã grego que devorava todos os seus filhos, temeroso de uma profecia segundo a qual ele seria morto por um de seus descendentes. Semelhante é também a história de Cronos.
A origem etimológica da palavra "crônica" é exatamente esta: Cronos. Cronos, por sua vez, nos remete ao tempo - cronologia. O tempo é esse deus que permite o surgimento da vida, que proporciona nosso crescimento e amadurecimento e, ao final, nos devora implacavelmente. E isto nos leva à explicação do significado que se pretende dar a um texto qualificado de "crônica": trata-se de algo destinado a perecer rapidamente. Diferentemente de quando planejo escrever um conto, ao redigir uma crônica, minha intenção é apenas de expressar alguma opinião a respeito de algo que sei ser passageiro. Um fato noticiado nos jornais e que possivelmente não será lembrado dentro de dois anos, talvez nem mesmo dentro de dois meses.
Desde 2013, uma sucessão aparentemente ininterrupta de fatos e factóides políticos e jurídicos passou a ocupar as manchetes de jornais, as redes sociais e os noticiários de TV. Cada notícia, pelo seu caráter bombástico, podia ensejar uma nova crônica. Crônica sim, pois tudo aquilo parecia passageiro e inverossímil. Só depois de passados pelo menos três anos é que passamos a perceber que aquela avalanche estava na verdade modificando drasticamente a concepção de democracia desenhada na Constituição de 1988. Passados entre seis e nove anos dessa enxurrada, seria muito difícil conseguir relembrar o que teria motivado a escrever sobre fatos que, à época, pareciam não passar de aberrações.
Muitos livros foram escritos em todo o mundo a respeito das chamadas "primaveras", movimentos supostamente espontâneos da população contra modelos políticos arcaicos. Guerras híbridas, "occupy", fake news, verdades alternativas e, por fim, ressurgimento da extrema-direita como movimento de massa - neonazismo que já se prenunciava em filmes como "Ele está de volta" (Er ist wieder da).
Cronos devora seus filhos, às vezes lentamente, deixando que eles cheguem à decrepitude senil; outras vezes bem depressa, ao estilo Moloch, engolindo-os ainda bebês. Aquém do tempo histórico, há o tempo individual, de nossas vidas. E, aqui, o lirismo na voz de Chico Buarque, ao falar da velhice, nos emociona:
"Imagino o artista num anfiteatro onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte tendo o mesmo artista como tela
Modelando o artista ao seu feitio o tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca como contrapesos de um sorriso
Já vestindo a pele do artista o tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco apenas abre a voz, e o tempo canta
Dança o tempo sem cessar, montando o dorso do exausto bailarino
Trêmulo, o ator recita um drama que ainda está por ser escrito
No anfiteatro, sob o céu de estrelas um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória e o artista, o infinito"
Dentro dessa perspectiva individual, Caetano Veloso é, talvez, aquele na MPB que tenha criado o poema de conteúdo mais metafísico sobre o tempo, beirando em certos momentos ao hermetismo. Em sua "Oração a Tempo", talvez após uma leitura de "O Ser e o Tempo" de Martin Heidegger, o poeta declara confiar na beleza que vê em Cronos, tão belo quanto seu filho, "um dos deuses mais lindos" e, por isso, propõe-lhe um acordo. Essa beleza (que não se faz presente em Moloch ou em Saturno) é musical: está no caráter rítmico do tempo e na inventividade que transmite a ideia de continuidade, desse compositor de destinos. Diferentemente de Dorian Gray, porém, ao menos num primeiro momento, Caetano nada pede para si, mas sim para as suas canções: que o tempo seja ainda mais vivo no som de seu estribilho e que o ritmo proporcione o prazer legítimo e o movimento propício quando for a hora certa. Nada pede Caetano para si, é verdade. No entanto, sabe que com isto o seu espírito de artista ganhará um brilho definido e espalhará benefícios. O artista vê com naturalidade o momento em que tiver saído para fora do círculo do tempo: nem o artista será nem o próprio tempo terá sido, muito embora acalente a possibilidade de reencontro num outro nível de vínculo.
Houve um tempo em que o Rio de Janeiro era considerado a cidade mais linda e encantadora do Brasil. Não cheguei a conhecer esse tempo, mas seus ecos vêm das canções de Tom Jobim, Carlos Lyra e Vinicius de Moraes. Hoje, o que resta daquela era está na memória de alguns cariocas septuagenários e saudosistas. O tempo atual é de violência, de infâncias destroçadas por um Estado cruel que fomenta milícias e templos monetários. Tempo de devorar crianças. Trago aqui duas canções de MPB dedicadas a esse deus atroz e que falam de ícones da geografia do Rio de Janeiro.
A primeira delas é "Tempo Rei", de Gilberto Gil, na qual o compositor bahiano destaca o caráter efêmero das coisas aparentemente mais sólidas, como os dois grandes símbolos da geografia carioca:
"Não me iludo, tudo permanecerá do jeito que tem sido Transcorrendo, transformando tempo e espaço, navegando todos os sentidos... Pães de Açúcar, Corcovados fustigados pela chuva e pelo eterno vento... Água mole, pedra dura, tanto bate que não restará nem pensamento... Tempo Rei! Oh Tempo Rei! Oh Tempo Rei! Transformai as velhas formas do viver Ensinai-me oh Pai, o que eu, ainda não sei Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei!... Pensamento! Mesmo o fundamento singular do ser humano De um momento para o outro poderá não mais fundar nem gregos, nem baianos... Mães zelosas, pais corujas, vejam como as águas de repente ficam sujas... Não se iludam, não me iludo, tudo agora mesmo pode estar por um segundo..."
Tudo o que é sólido desmancha no ar. A democracia que parecia consolidada em 2013, como ficaríamos sabendo, estava por apenas um segundo. Mas não só a democracia. A civilização foi de tal modo agredida, vilipendiada, sobretudo em sua perspectiva socioambiental, que nada nos assegura que a própria vida no planeta também não possa estar agora mesmo por um segundo.
Chico Buarque já escreveu sobre crianças famintas, como em Brejo da Cruz, ou então sobre crianças exterminadas, em Meu Guri. Mas como o mote da crônica é o tempo, lembro outra canção que, à semelhança de Gil, trata da relação entre o tempo e a paisagem carioca. Trata-se de "Morro Dois Irmãos":
"Dois Irmãos, quando vai alta a madrugada E a teus pés vão-se encostar os instrumentos Aprendi a respeitar tua prumada e desconfiar do teu silêncio.
Penso ouvir a pulsação atravessada Do que foi e o que será noutra existência É assim como se a rocha dilatada fosse uma concentração de tempos,
É assim como se o ritmo do nada Fosse, sim, todos os ritmos por dentro Ou, então, como uma música parada sobre uma montanha em movimento."
Aqui, Chico Buarque destaca que a conformação do cenário carioca é, ela mesma, resultado da ação do tempo. A canção difere da de Gilberto Gil apenas no que diz respeito à perspectiva: Gil destaca o que virá, Chico expõe como veio. Assim também é a sociedade brasileira, uma concentração dos tempos de colonização, de escravização e genocídio, de destruição das florestas.
Chegar ao final de 2022 e ver Lula reunir-se com os ministros do Supremo Tribunal Federal que permitiram a degradação da democracia e sua prisão ilegal por 580 dias foi algo que somente os sobreviventes da pandemia no Brasil tiveram o privilégio de testemunhar, o que nos remete a O Tempo não Para, de Cazuza:
"Mas se você achar que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não para"
Há dois anos e meio, em 8 de maio de 2020, escrevi uma crônica chamada "Passado Imperfeito", tendo como tema o próprio tempo. Nela, eu falava sobre o ritmo do tempo dedicado à observação do crescimento de tomateiros e emendava tudo com aulas de Italiano. Na ocasião, estudava o "Imperfeto I": "Prima mi svegliavo alle 5:30 per andare al lavoro; oggi mi sveglio alle 8 perché lavoro a casa". E, na crônica, eu dizia que aquela aula subitamente havia se transformado numa sucessão de confissões melancólicas e projeções pessimistas: éramos todos extremamente felizes, hoje somos escravos angustiados. Em dado momento, o professor começou a rir e a dizer que a aula tinha um tom marcantemente leopardiano - isto é, triste como uma poesia do poeta italiano Giacomo Leopardi. Como, porém, evitar comparações no tempo, se a aula era sobre o uso de um passado imperfeito? Então, como não nos lembrarmos de como era a vida há três meses e como ela era agora, durante aquela aula?
Os fatos narrados naquela crônica ocorreram, repito, há apenas dois anos e meio. Em dado momento, eu passei a falar sobre certa visita-surpresa ao STF e sobre uma entrevista com Regina Duarte, na qual a atriz sorria com benevolência para a tortura política. Cronos haverá de devorar as figuras hediondas mencionadas naquela crônica esquecida em que, melancolicamente, cantarolava Caetano e Gil: tudo demorando em ser tão ruim. Ao final, eu me apresentava como um dos milhões de brasileiros desconhecidos que contavam nos ponteiros do relógio o momento em que teriam fim a pandemia e o nazifascismo.
A pandemia, ao que parece, teve fim. O nazifascismo, por sua vez, foi derrotado nas urnas, prenunciando-se um Novo Tempo, na voz de Ivan Lins:
"No novo tempo, apesar dos castigos Estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos
Pra nos socorrer. No novo tempo, apesar dos perigos Da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta
Pra sobreviver.
No novo tempo, apesar dos castigos De toda fadiga, de toda injustiça, estamos na briga
Pra nos socorrer. No novo tempo, apesar dos perigos De todos pecados, de todos enganos, estamos marcados
Pra sobreviver. No novo tempo, apesar dos castigos Estamos em cena, estamos na rua quebrando as algemas
Pra nos socorrer. No novo tempo, apesar dos perigos A gente se encontra cantando na praça, fazendo pirraça
Pra sobreviver.
Pra que nossa esperança Seja mais que vingança Seja sempre um caminho que se deixa de herança."
Há seis anos, a Revista Istoé estampava na capa uma foto de Lula em fundo vermelho com a frase: "O cara acabou". Ao final do discurso do presidente eleito do Brasil na COP 27, no Egito, no último dia 15 de novembro, veio então à lembrança a voz de Milton Nascimento que, em Maria Maria, fala em esperança e, portanto, em tempo:
"...é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida"
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Guilherme Purvin é escritor. Autor dos livros de contos "Laboratório de Manipulação" (2017), "Sambas & Polonaises" (2019) e "Virando o Ipiranga" (2021). É organizador dos livros "Brasil 2029", "Isto não é direito" e "Natureza degradada", coletâneas de contos premiados pelo Concurso Literário da Revista PUB.
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