top of page

O olhar atento de uma autora que, quando menina, sobreviveu à guerra

Higor Carvalho


Em que pese nossas histórias cruzadas e nossa contribuição mútua na construção das culturas transatlânticas nós, brasileiros, sabemos muito pouco sobre África. A Terra Redonda acerta muito, portanto, ao presentear o público brasileiro com o livro Zungueira, escrito pela querida professora Indira Monteiro Félix.


Elas se levantam cedo de manhã, antes que a maioria das pessoas que residem na cidade. Pegam o candongueiro, o ônibus ou caminham quilômetros até as praças (mercados de rua a céu aberto), onde compram os produtos que irão vender ao longo do dia. Elas precisam estar prontas para zungar antes que os demais trabalhadores saiam de casa, para garantir o negócio daquele dia. Por volta das 7 horas da manhã, com seus filhos no colo ou nas costas e as mercadorias equilibradas numa bacia pesada que portam sobre a cabeça, as zungueiras começam a zungar em meio à massa que circula pelas principais centralidades de Luanda, cidade de mais de 8 milhões de habitantes, uma das cinco maiores de África.


Zungar é circular a mercadoria no espaço urbano ao invés de vendê-la no mercado. Neste livro, aprendemos que o termo zungar e seus derivados substantivos e adjetivos teriam surgido nos anos 1990, mas o texto destaca que, enquanto prática e expressão da divisão social e sexual do trabalho, a existência dessas trabalhadoras ambulantes já datava da época colonial e mesmo pré-colonial, como era o caso das peixeiras e das quitandeiras. Hoje, elas vendem de tudo: água, iogurte, roupas íntimas, mata-baratas, raquetes mata-mosquito, mandioca, gindungo, frutas, medicamentos – é através delas que boa parte das mercadorias circulam em Luanda.


Ao zungar, as zungueiras buscam o consumidor nas ruas, ampliando as possibilidades de encontro entre consumidor e comerciante. Elas promovem, portanto, uma circulação física de mercadorias que, do ponto de vista da realização do capital, precisam circular (serem vendidas e consumidas) para garantir a reprodução capitalista. E ao circularem e praticarem o espaço, essas mulheres produzem lugares de comércio, de trocas, de relações sociais; produzem, ao menos em parte, fragmentos de cidade.


O mercado informal e ambulante em grandes cidades não é em si uma novidade para o público brasileiro. Mas até mesmo para um alguém familiarizado com essas dinâmicas, a realidade das zungueiras de Luanda impressiona. Nesse sentido, o cotidiano dessas trabalhadoras angolanas é um tema desconhecido no Brasil. E, em que pese nossas histórias cruzadas e nossa contribuição mútua na construção das culturas transatlânticas – ou na construção daquilo que Lelia Gonzales chama de Améfrica Ladina –, nós, brasileiros, sabemos muito pouco sobre África. A Terra Redonda acerta muito, portanto, ao presentear o público brasileiro com o livro Zungueira, escrito pela querida professora Indira Monteiro Félix.


Neste livro, Indira revela práticas de trabalho informal na maior cidade de Angola enquanto pesquisadora, mas também enquanto uma mulher negra angolana. Seu trabalho etnográfico, particularmente dificil de ser feito em Angola, se combina com seu olhar de assistente social e de mulher cuja história de vida se mistura muito com a história pós-colonial de seu país. Isso não apenas legitima o seu lugar de fala, como torna esse trabalho ainda mais único. É que,utilizando a história como fio condutor da exposição de sua pesquisa, Indira recupera o lugar ocupado pela mulher angolana na sociedade pós-colonial, em tempos de guerra e de paz, mostrando como seus papeis sociais foram se transformando de acordo com as necessidades sociais de cada época.


O livro escrito por Indira, fruto de sua dissertação de Mestrado defendida na PUC de São Paulo, contém mais do que pesquisa. Ele é preenchido do vivido. O olhar atento de uma autora que, quando menina, sobreviveu à guerra, lhe permitiu registrar fatos de extrema relevância para o trabalho que a futura professora doutora e pesquisadora iria desempenhar. Foi então uma grande alegria ler as páginas deste livro que hoje a Terra Redonda traz ao publico brasileiro, assim como muito me alegra escrever esta apresentação, a pedido da autora.


Não se trata, no entanto, de romantizar o trabalho das zungueiras. A precariedade dessa condição laboral é uma realidade latente, produto das desigualdades sociais que, como bem lembra a professora, são legados sucessivos da escravatura, da colonização e da guerra civil. E como a autora associa, as precariedades laborais das zungueiras se associam às precariedades urbanas de Luanda, ao saneamento quase sempre inexistente, à falta de banheiros públicos, à falta de água potável acessível, à presença incontornável da poeira nas ruas dos bairros populares de Luanda, que irritam os olhos e dificultam a respiração dessas mulheres e de suas crianças. Ainda, a essa camada de precariedades de infraestrutura e trabalho, soma-se a precariedade dos direitos dessas mulheres, não raramente sujeitas à violencia física extrema e aos riscos intrínsecos da corrupção, do clientelismo e da repressão às quais estao sujeitas.


Através dos relatos, percebemos o cansaço dessas mulheres, os riscos aos quais elas se expõem, a presença do trabalho infantil, da violência de gênero, e a falta de uma política de assistência e segurança social que ampare essas trabalhadoras, o que implica na produção de um cotidiano que não pode ser suspendido por nenhuma outra alternativa: o que resta é a escolha (diária) pela sobrevivência. Mas, também através dos relatos, vamos percebendo a força da articulação coletiva dessas mulheres, evidente diante de uma situação de agressão e violência contra uma delas ou contra seus filhos, as redes de solidariedade para apoio financeiro, o apoio mútuo de mulheres que se tornam mais fortes amparando umas às outras e tomando a própria vida pelas mãos.


Quem conhece Luanda ou qualquer outra grande cidade da Africa Subsahariana sabe a centralidade que essas trabalhadoras exercem na paisagem urbana. O livro de Indira Monteiro Félix nos permite compreender as particularidades do trabalho na zunga e o que tem de sistemático nesse processo. É, portanto, uma grande contribuição para todos aqueles que se interessam pelos ângulos africanos dos estudos urbanos, sociais e antropológicos do capitalismo periférico contemporâneo.


____________

Higor Carvalho é colaborador de ensino e pesquisa no Instituto da Governança do Meio-ambiente e Desenvolvimento Territorial, Universidade de Genebra. Pesquisador sobre cidades africanas e sobre o papel de fluxos de capitais Sul-Sul na produçao do espaço em Angola. É autor de Habitação Social no Brasil e no México: transformações e permanências nas políticas publicas e na produçao de mercado da moradia (Terra Redonda, 2023).

19 visualizações0 comentário
bottom of page