Em texto inédito, o consagrado artista, escultor, pintor, poeta, desenhista, contista, cenógrafo, ensaísta, videomaker, romancista, gravador, dramaturgo e diretor de cinema Nuno Ramos, qual leal discípulo do Prof. Papaterra Redondo, faz leitura acachapante, ácida e básica, concreta e gasosa, do adorável livro 99 histórias, de Sergio Papi. Das alturas do sucesso, Nuno vê lá na Terra seu pequeno e inconveniente amigo. E sucumbe ao desejo de chamá-lo de Baixinho, só porque o time dele tem a maior torcida do Brasil. mas perdeu o Mundial para o Liverpool.
Por Nuno Ramos
Os quase 100 contos de Sergio Papi poderiam ser mil. Pois são, na verdade, um único conto, com inúmeras arestas apontando para todo lado. Rondando todos eles, há uma única personagem, um Horla (personagem de Maupassant), um ser multidimensional de Lovecraft, uma tara familiar de Poe ou o grito de um gato dentro da parede. Mas ao invés de excepcional, é o mais comezinho dos seres quem aparece aqui – um looser de subúrbio querendo querer.
É essa personagem, nem sempre nomeada (nem todos os contos são na primeira pessoa), que pede a vez, disfarçada nas ruas, na passagem do tempo, nos pequenos detalhes, disfarçando sua miséria e seu ressentimento. Este desocupado, discreto e quase conformado, é o achado do livro, e é seu perfil que, de modo desviante, os contos vão esboçando. Quando o perdemos de vista, tudo se perde junto. Quando o encontramos de novo, o livro embala e ganha sentido.
Alguns traços seus aparecem meio sem querer. Várias vezes, por exemplo, repete trechos de enciclopédia sobre os assuntos mais diversos (a história das ilhas Samoa e Taiti, astrolábios, a Lusitânia e a Galaécia, os Drakar dos Vikings, a história da tipologia desde Gutemberg), como um professor de ginásio. Tem, portanto, alguma cultura. Mas o principal é que não cabe na vida que leva (como tantas personagens da literatura russa) e vaza para o real uma espécie de latência fantástica, de poderia-não-ser-assim – tímida, hesitante, quase querendo voltar atrás (por isso os contos têm tão pouco desenvolvimento interno), mas ainda assim entrando por todas as frestas. O fantástico, aqui, parece, antes de mais nada, o alívio desse homem comum. “De dia, nada sou ou faço, mas à noite, quando me deito e sonho, sou capaz de grandes feitos, viagens, navegações”, diz o narrador de “Astrolábios”(conto 35).
Muitas dessas narrativas descrevem um Poder, algo que não se tinha mas que se passou a ter, e que o narrador vem ao mundo, através daquele conto, anunciar que adquiriu. Um surdo que perde o medo, um escalador de árvores que pode gritar o que pensa, um súbito nariz-falo, um fígado que sangra inexplicavelmente. Mas para que, exatamente, serve esse poder? Para que serve saber quando se vai morrer (conto 36, “Memória”)? Quais possibilidades este poder abriu a quem o possui? O que fará com isso? Tudo mudou, agora? Ou assim que veio, passou? Não sabemos.
Estes contos não têm dia seguinte e o narrador de fundo, difuso, imerso em seu quase anonimato, não nos diria tanto. Como o Horla, bebe o copo d’água que deixamos à noite na cabeceira e logo some. Apenas indica que está ali, que é mais do que parece, que pode transformar-se, que tem uma arma secreta, um poder estranho que lhe aconteceu. Em suma, que está vivo e pronto. Mas pronto para quê?
Para escrever um livro, este livro que estamos lendo? Será este seu verdadeiro poder?
(*) Este texto deveria ser, e será, o Prefácio do livro 99 histórias, que encontra-se à venda neste site. Mas, por questões logísticas, atrasou-se e será incorporado ao mesmo em breve, na 1ª reimpressão, A ilustração é uma obra de Nuno Ramos, publicada no site do autor.
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