top of page

Lagoa do Sino, sonho possível

Um relato da doação da fazenda de Raduan Nassar para transformá-la em campus de uma universidade pública numa região em que o Estado brasileiro sempre faltou.


Trecho do livro DEZ ANOS DO CAMPUS LAGOA DO SINO DA UFSCar

Fabiana Santos Cotrim, Henrique Carmona Ouval, Alice Miguel de Paula Peres (orgs.)


Ilustração
Ilustração de Regina Carmona para a capa do livro

1. Um começo...


Era o Bazar 13, na rua Teodoro Sampaio, cidade de São Paulo. Mas antes fora um jovem casal que atravessou o Atlântico vindo de uma aldeia do sul do Líbano. Posteriormente surge um jornal e uma gráfica próxima ao Bazar, fundada por seus filhos. Dos 10 filhos, o jovem Raduan Nassar, formado em Filosofia pela USP em 1963, tornou-se um dos maiores escritores da literatura brasileira. brasileira. Lavoura arcaica, obra magistral publicada em 1975, foi seu principal romance.[1]


Nos anos 1980, Raduan se afasta da literatura, argumentando que “não há criação literária que se compare a uma boa criação de galinhas”. Colocando em prática seu intento, o escritor-agricultor torna-se proprietário da fazenda Lagoa do Sino, localizada no Sudoeste Paulista.[2] Em uma conversa com Ariano Suassuna, registrada pela jornalista Marilene Felinto, o autor comenta:


Raduan. Eu parei em 84, estou muito envolvido com a agricultura hoje. [...] ao mesmo tempo em que tive muita paixão pela literatura [...] sempre tive muita dificuldade de privilegiar o escritor, como os escritores se privilegiam. Tenho muita dificuldade de hierarquizar profissões. Eu acho que, como diz o Ariano, o agricultor é tão ou mais importante.[3]


Estávamos no governo Lula, em 2008. O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) já havia dado passos largos. Um país com marcas da colonização vinha avançando no projeto de ampliação do acesso da população às universidades públicas.[4]


Nessa mesma época, a fazenda Lagoa do Sino estava sendo oferecida para doação à Universidade de São Paulo (USP) e ao estado de São Paulo. Passou-se um ano, depois dois anos, e a resposta foi dada ao Raduan: a construção de uma estação experimental. O porquê a USP “recusou” a doação para a construção de um campus universitário é assunto para muitas hipóteses.[5] O fato é que essa situação produziu efeitos. Raduan sentiu tristeza e insegurança. Ficou desconfiado em relação à possibilidade de novas tentativas de destinar a fazenda Lagoa do Sino ao bem comum.


2. Amigos e circunstâncias


Era uma estudante de Letras da USP. Na adolescência veio com a família de Recife para São Paulo. Mas, antes, fora neta de retirantes da seca paraibana nos anos 1930. Não conheceu seus avós. As dificuldades e a fome fizeram com que sua avó doasse alguns de seus filhos. Sua mãe, aos quatro anos, perdeu sua origem de sangue. Marilene Felinto, autora de ficção de mais de dez livros, nos conta:[6]


Marilene. Conheci Raduan Nassar no início dos anos 1990, numa tentativa de entrevista para a Folha de S.Paulo. Ficamos amigos. No final daquela década, em 1999, bolei uma pauta para a Folha: levar Raduan Nassar de São Paulo para Recife, para um encontro com Ariano Suassuna.


No Líbano, em 1908, Hasan, com 11 anos, entra sozinho em um navio. Desembarcou no Brasil sem falar uma palavra em português. Com seu nome transformado em Vicente, trabalhou com um tio na rua 25 de Março, desentendeu-se com ele e partiu para o interior paulista. Assentou trilhos na Noroeste,[7] em Bauru, e lá conheceu uma camponesa de Avanhandava, SP, descendente dos Kaingang, e tiveram dois filhos. Um deles casa-se. Nasce Sergio Alli,[8] em Sorocaba. Após anos de estudo em São Paulo, decide cursar Ciências Sociais na USP, onde conhece Marilene Felinto.


Sérgio. Eu e Marilene somos contemporâneos na USP. Ela fez Letras e eu, Ciências Sociais. Conheço Raduan pela Marilene. Eu já tinha lido Lavoura arcaica, aí Marilene me conta sobre o caso da Fazenda Lagoa do Sino, que Raduan queria doar a Fazenda e não estava conseguindo.


Portugal estava alistando os jovens para as guerras coloniais em Moçambique, Angola e Guiné. Fugindo do recrutamento João com a esposa e filhos partem dos Açores e ingressam no Brasil. Eram os anos 1950, e o Brasil caminhava na marcha da industrialização. Um dos filhos de João conhece sua futura esposa no trabalho, que vinha de Minas Gerais, uma cidadezinha chamada Santana do Jacaré. Casam-se. Vão morar em São Bernardo, cidade operária do estado de São Paulo. Seus filhos nascem. Um deles, no ano 2000, foi procurado pelo sobrinho de Raduan Nassar para fazer a contabilidade da fazenda Lagoa do Sino. Messias e Raduan trabalham juntos. Desse contato, uma amizade. Vínculos raros transformam a realidade. Messias nos conta:


Messias. Eu fiz alguns cursos, comprei livros e passei a pesquisar melhor. Em 2003, o Raduan voltou e me procurou novamente, então topei o desafio. Falei para ele: “Você vai me ensinar e eu também vou te passar o que a gente pode fazer para melhorar o que você tem”. Ele topou. Eu fui a primeira vez em março de 2003 e levei os livros contábeis e comecei a conversar com ele. Falei: “Olha, Raduan, você calcula a depreciação dessas máquinas e tudo mais”. Ele falou: “Não, eu nem quero isso. Eu controlo tudo aqui, ó”. Era um caderninho manuscrito, com entradas e saídas, muito bem feito, de uma inteligência, mas sem métodos de controle financeiro, empresarial. Era o método Raduan, e funcionou muito bem. Ele falou: “Não, não quero nada disso. Eu quero uma coisa muito simples”. E eu falo para as pessoas que, ali, eu comecei a perceber que tinha alguma coisa diferente.


3. Um relâmpago rasga o céu


Messias. Virou o ano. Era véspera do feriado de 21 de abril. Eu prestava serviços para uma ONG[9] em Diadema, e trabalhavam lá Sérgio Alli e Marilene Felinto, que era amiga do Raduan. Marilene me perguntou sobre a doação, e respondi: “Marilene, o Raduan está assim, se você fala da universidade federal, ele não quer saber. Um amigo comentou que lidar com órgão público é complicado e muito traumático. Você o conhece e sabe que ele pode desistir e não querer mais tratar desse assunto, mas você deve insistir!”.


Marilene. Ele já estava disposto a vender a fazenda! Em certa tarde, estávamos eu e Sérgio trabalhando na ONG. Eu liguei para o Raduan, por acaso, para outro assunto. Ele acabou comentando que estava muito bravo e ia vender a fazenda. Tinha decidido vender a fazenda! Não queria mais saber de doar. Estava com muito mau humor. Eu já tinha ido para a fazenda dele algumas vezes. Achei muito difícil aceitar que ele não doasse a fazenda para uma instituição pública. Uma pessoa está disposta a doar e, quando decide, acontece isso?


Sérgio. Em 2009, Marilene me contou a história do Raduan, que estava numa depressão profunda. Nessa época, o Raduan era folclórico para mim. Ele foi para a fazenda e ficou lá 30 anos. Tinha um amor inacreditável pela terra! Ele recuperou a terra, que era o amor da vida dele, e queria deixar para o público. Ficou 2 anos trabalhando isso com a Esalq,[10] que, após esse período, entregou um projeto bem estruturado de oito a dez páginas. Quando estava para ser concretizada a doação, o Celso Lafer, que era o Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado, disse que o Raduan tinha doado terras para o MST. Na verdade, era uma gleba que o Raduan fez a partição em lotes e doou alguns para o MST fazer uma escola de formação. Os lotes deveriam ser usados para viabilizar o recurso para a escola. Por conta dessa doação, foi vetada a doação da fazenda para a Esalq, que, nas minhas contas, na época, valia pelo menos quarenta milhões. Daí o Raduan entrou em depressão.


Marilene. Falei com o Sérgio, que também já conhecia o Raduan: “Oh, estou aqui com o Raduan e ele quer vender a fazenda!”. Eu ainda estava falando com ele ao telefone quando o Sérgio falou: “Como assim, quer vender a fazenda? Ele não ia doar?”. Então o Sérgio disse: “Não, de jeito nenhum! Fala para ele segurar. Fala para ele não fazer nada que eu vou falar com o Gilberto de Carvalho!”[11]. Gilberto de Carvalho era o chefe de gabinete do governo Lula. Era 2010, último ano do governo, e o Sérgio ia justamente trabalhar com o Gilberto! O Sérgio falou: “Marilene, fala pra ele não fazer nada!” Eu falei: “Então, vamos lá conversar com ele na casa dele?”. Eu disse para o Raduan no telefone: “Olha, você espera aí que nós vamos à sua casa, agora! O Sérgio falou que vai doar a sua fazenda para o governo federal!”. Ele respondeu: “Imagine, isso é uma mentira, não vai acontecer, vocês estão loucos!”. Eu falei: “Não, louco não, fica aí que nós estamos indo!”. Saímos da ONG, em Diadema, e fomos até Pinheiros, ao apartamento do Raduan. Tomamos um café e conversamos, conversamos, conversamos...


Sérgio. Jantamos com o Raduan em um restaurante bem antigo chamado Tabu. Raduan nos contou a história e me passou o projetinho.


Marilene. Raduan estava tão impaciente que o Sérgio resolveu ligar para o Gilberto naquele mesmo momento. O Gilberto atendeu. Ele contou a história rapidamente e Gilberto falou: “Fala para ele segurar essa fazenda, vou falar agora com o Lula! Vou falar com o presidente! O presidente conhece o Raduan e não vamos permitir isso!”.


Sérgio. Isso foi provavelmente segunda ou terça-feira. Na quinta-feira eu fui a Brasília me encontrar com o Gilberto, às 18h30, no dia em que o Lula não estava no Palácio. Deixei uma cópia daquele projeto com o Gilberto, expliquei a história e ele se prontificou: “Pode deixar que amanhã cedo eu ponho na mão do Lula!”. Havia um ritual de chegada do Lula no Palácio. Ele fazia questão de cumprimentar as pessoas e parava para conversar com um e outro. Uns trinta a quarenta minutos ele investia nisso, no relacionamento de governo. Ele ia direto nas pessoas e falava que era uma sinalização de que, em última instância, ele estava ali, acesso direto. Gilberto me contou depois. Nesse momento, quando o Lula chegou, Gilberto falou com ele sobre a fazenda ainda no caminho do ritual: “Tem esse problema aqui”. E colocou na mão do Lula. Quando chegou no gabinete, Lula solicitou: “Chame o Haddad!”. Eram 9h30 e o Haddad já estava no gabinete do Lula, que pediu para ele resolver esse problema. Queria dar uma resposta o mais rápido possível. Por volta do meio-dia, o Haddad ligou para o Raduan, diretamente!


Messias. Eu estava com o Raduan quando o Haddad ligou! A conversa foi mais ou menos assim. Haddad: “Olha, Raduan, o presidente me deu a missão de fazer isso acontecer. A universidade mais próxima que tem ali e está em expansão é a UFSCar, que tem um campus em Sorocaba. A UFSCar vai entrar em contato com você. O reitor, o professor Targino, em meia hora te liga”. Raduan: “Olha, Fernando, é o seguinte: é preciso ficar claro que eu tinha pedido para a Esalq, como contrapartida, uma área mínima construída de 7.000 m²”. Haddad: “Raduan, com 7.000 m² nós fazemos escola, Instituto Federal; uma universidade tem entre 20.000 e 30.000 m² de área construída!”. O Raduan abriu aquele sorrisão e disse: “Isso foi como um violino para mim!”. Terminada a conversa, meia hora depois, Targino ligou e trocaram contatos, e-mails, e, no mês de maio, houve a primeira visita de uma comissão da UFSCar à fazenda Lagoa do Sino.


Marilene. Quando o Haddad ligou para o Raduan, foi a consagração final, ele ficou radiante! Me ligou na sequência e falou: “Olha, o Haddad acabou de me ligar e disse que eles querem ficar com a Fazenda”.


Sérgio. O Haddad falou algo do tipo: “Alô, Raduan, recebi o seu projeto aqui e estou maravilhado, mas nós temos um problema: você exige 7.000 m² de construção destinada à educação que atenda aos filhos de agricultores, mas o nosso gabarito mínimo de universidade é de 20.000 m²”. Fez uma piada lá (rindo). Raduan quase teve uma parada cardíaca (rindo). Eu diria que o Raduan ganhou uns dez anos de vida. Ele ficou muito feliz e passou a trabalhar no projeto!


Marilene. Graças a esse acaso de eu ter ligado para o Raduan naquele exato dia, do mau humor dele, de o Sérgio ter esse contato próximo com o Gilberto e, estar indo trabalhar em Brasília, foi uma coincidência muito propícia. Depois disso, o Lula ficou muito próximo do Raduan.


____________

[1] Raduan Nassar também escreveu a novela Um copo de cólera, publicada em 1978, e uma coletânea de contos, Menina a caminho e outros textos, em 1997.

[2] Sobre a história de Raduan Nassar, ver: Raduan Nassar, Cadernos da Literatura Brasileira, n. 2, set. 1996. Instituto Moreira Salles.

[3] Ariano e Raduan falam de cabras e Dostoievsky. Folha de S. Paulo, 15 dez. 1999. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1512199907.htm. Acesso em: 5 fev. 2024.

[4] Sobre a expansão das universidades públicas, ver: Calderari, E. S.; Felipe, J. P. (org.). Novos campi universitários brasileiros:  processos e impactos. Brasília, DF: Editora da UnB, 2021. Disponível em: https://livros.unb.br/ index.php/portal/catalog/view/134/300/1003. Acesso em: 10 fev. 2024.

[5] Nas entrevistas realizadas, diversos motivos aparecem como justificativa para a não doação da fazenda Lagoa do Sino à USP. As hipóteses são diversas. Alguns sugerem que os gastos para levantar um campus universitário seriam grandes e a universidade estadual não teria condições; daí utilizar a fazenda apenas como um campo experimental. Também se especula sobre o isolamento da região frente aos grandes centros e as dificuldades de enraizamento de professores. Outros levantam questões políticas, como a doação de alguns terrenos em Campina de Monte Alegre por parte de Raduan ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

[6] Marilene Felinto ganhou o prêmio Jabuti de autora revelação em 1982 com a obra As mulheres de Tijucopapo. Dentre sua vasta obra, em 2022 a autora publicou uma coletânea intitulada Mulher feita e outros contos.

[7] Estrada de Ferro Noroeste do Brasil.

[8] Sérgio Alli é editor da Terra Redonda Editora e autor de 13 anos de Lula e Dilma. (nota do blog)

[9] Organização não governamental.

[10] Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo.

[11] Gilberto de Carvalho foi chefe de gabinete da Presidência da República entre 2003 e 2010

Comments


bottom of page