Tito Kehl
A vozinha falsa ao telefone me grasna seu "Bom dia, Luis",
e me dou conta de que já não me espanta que tantos
saibam meu nome, com uma intimidade que não me agrada,
como o afago de um desconhecido no ônibus,
e fico ouvindo a voz desfiar seu rosário
de frases feitas, onde tudo é comercial e nada humano,
e penso nos bons tempos em que o atendente gaguejava,
errava os tempos de verbos e as concordâncias,
e me compadeço da pobre máquina, bruta e ensurdecida,
a repetir, a não importa qual atenda,
a mesma ladainha, que para ela não passa de combinações binárias
que produzem certos sons bem definidos.
Olho ao redor, e procuro seres humanos, iguais a mim,
ou parecidos, com dores que vão além da superfície
- porque ser gente dói, mas bem no fundo -
com amores que vão além dos céus
- porque são esses amores que nos distinguem
dos afetos que não passam de um véu
colocado sobre o desejo mal disfarçado de sexo,
de volúpia, de cachaça com mel -
procuro gente antiga, com as dúvidas que Deus nos deu
para que nos guiássemos na neblina,
sem faróis, freio ou buzina, fiando-nos não mais
que na promessa da compaixão, de que não seremos feitos pó
sem antes passarmos pelo êxtase de nos sabermos filhos,
de um pai que, se ausente, nunca abandonou a gente,
e voltará, sabemos disso, quando a chapa em que estamos
estiver quase ao rubro de tão quente.
Esse é o mundo, cheio de desvãos e de tropeços,
esses somos nós, fieiras de defeitos,
essa é a única realidade, em que a banana feia
dá no mesmo cacho que a madura, e a verde
espera seu momento, que talvez não dure.
A perfeição é o erro fundamental
da ideia de um mundo perfeito, e ela só existirá
quando o homem reconhecer que o erro
está na raiz do acerto, e que esse só existe
porque existe o outro, e que o chato é plano,
e o sagrado é torto, e o que vale, nessa vida,
é viver na beira do abismo, em passo trôpego,
e respirar baixinho, pra não acordar o inimigo
que nos espera dos seus esgotos.
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