Sergio Alli, editor da Terra Redonda, 21/09/2022.
Enquanto jornalão fatura com folclorização, Sairi Pataxó , autor de "Boitatá e outros casos de índios", afirma que escreve histórias, não "mitos e lendas".
Passou batido. (Costuma ser assim nos casos mais enraizados de racismo estrutural). Poucos leitores se deram conta da quantidade de racismos e preconceitos reunidos pela Folha de S.Paulo em sua recém lançada Coleção Folha Folclore Brasileiro para Crianças, em 25 volumes.
Antes mesmo de termos acesso ao conteúdo dos livros, os racismos se evidenciam. Fica explícito nas imagens dos 25 livros a serem lançados pela Folha um brutal ocultamento da escravização e genocídio dos povos indígenas originários do território brasileiro e da escravização dos africanos e seus descendentes. Também é usado o velho truque da inferiorização étnica dos indígenas por meio de sua insistente retratação como crianças, isolados de seus povos e culturas.
Mais de 50 anos depois do poeta Torquato Neto ter apontado a urgência de desfolclorizar o folclore, a Folha faz exatamente o contrário. As peças de propaganda da coleção, publicadas como se fossem matérias editoriais do jornal, são eloquentes em seu reacionarismo cultural. Seus textos, dissimuladores, dizem que os livros reúnem “parte do legado da tradição oral nacional. (...) Nesse sentido, a coleção apresenta aos jovens leitores um pouco mais do imenso imaginário popular do Brasil, detalhando um patrimônio herdado de influências europeias, indígenas e africanas”.
Ao caracterizar o Saci, tema do primeiro volume, a Folha afirma que o personagem “muitas vezes era usado como bode expiatório para os desastres e contratempos da vida no campo”, como se essa existência não fosse marcada pela perversidade da escravização, que nunca aparece nos livros. Cabe lembrar que a própria caracterização que o jornal faz das histórias como “mundo fantástico das lendas e dos mitos”, tem sido bastante questionada por autores populares.
A Terra Redonda Editora, coincidentemente, está lançando hoje, "Boitatá e outros casos de índios", de Sairi Pataxó, da Aldeia Barra Velha, Caraíva (BA). O livro tem histórias ilustradas por crianças de seu povo e contadas por seus antepassados. Trata-se de uma reedição do livro produzido originalmente pelo próprio autor.
O livro está sendo lançado no Festival Caju Leitores, um encontro de literatura indígena pioneiro no Brasil, realizado no território de Sairi. Ele afirma em seu livro que “as histórias contadas pelos indígenas são verdadeiras e repassadas, no dia a dia, a seus descendentes e às pessoas que visitam suas aldeias. Dessa forma, todos vão compreendendo a importância que esses seres encantados e invisíveis têm em nossa cultura”.
Nossa editora encomendou a elaboração da ficha catalográfica do livro "Boitatá e outros casos de índios" para a excelente bibliotecária Priscila Pena Machado, que trabalha com a Terra Redonda desde nosso primeiro livro. E ela produziu a ficha seguindo os padrões vigentes, colocando como assuntos: “1. Indígenas da América do Sul - Lendas. 2. Folclore - Brasil. 3. Literatura folclórica”.
Mas Sairi Pataxó, o autor, quando revisou a prova do livro, não concordou com os termos da ficha catalográfica, e me questionou: – "Por que as histórias dos indígenas, que ouvi dos meus antepassados, são lendas e mitos, e as antigas histórias dos brancos são textos sagrados? Eu não faço literatura folclórica”.
Diante desse questionamento, a bibliotecária esclareceu que na elaboração da ficha só pode usar termos que constam nos códigos de classificação de bibliotecas de referência. Somente depois de uma boa pesquisa ela conseguiu encontrar, na biblioteca do Congresso dos EUA, os termos escritores indígenas e literatura indígena. Infelizmente, retrato do nosso atraso no tema da opressão racial contra os povos originários, eles não constam nos códigos adotados usualmente no Brasil. A ficha catalográfica saiu, finalmente, com os assuntos: 1. Indígenas da América do Sul. 2. Índios Pataxó - Literatura - Escritores indígenas 3. Literatura Indígena – Brasil.
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