Autora apresenta a saga de Lucila, uma empregada doméstica negra que é protagonista e heroína. E conta como nasceu seu livro "Bondade branca", a partir de cartas de presos que cumprem penas na Penitenciária da Papuda, em Brasília.
Quando você tá retratando uma realidade concreta, você tem um compromisso com o fato que, muitas vezes, impede que você vá nas profundezas da realidade, porque as profundezas da realidade nem sempre são retratáveis e quando você escreve uma ficção, você pode retratar isso, você tem a liberdade de estar criando.
Então, eu, a partir desse elemento das cartas dos internos, eu comecei a construir personagens e fui criando camadas. Aí eu fui tentando trazer para esse livro a tragédia brasileira que é o racismo estrutural. Então, eu tentei colocar nessas personagens a mazela do racismo estrutural, que eu vejo que se expressa de uma forma muito evidente em dois lugares: no trabalho doméstico e no sistema prisional. Então, esses dois elementos estão ali. E eu cresci em Brasília, eu sou uma pessoa que cresceu numa classe média, branca, estudei em escola particular, e frequentei muito as casas da classe média. Então, estava ali vendo essas relações interraciais dentro das casas. Isso, com minhas amigas e a minha própria família.
Então, as personagens são pessoas de classe média que têm uma empregada doméstica, que vive num esquema de semiescravidão, mas que não é chamado de escravidão e que ela mesma considera, se considera privilegiada, por ter sido, talvez, escolhida por uma pessoa branca, por uma família branca, para fazer parte daquilo, porque, a partir dali ela tinha acesso a coisas que na realidade miserável de onde ela veio, ela não tinha. Então, ela achava que, talvez, aquelas pessoas estivessem fazendo algum tipo de bondade para ela.
E daí vem o título que é "Bondade branca", não sei se todo mundo conhece aquela expressão que se chama “inveja branca”, que é uma expressão racista, que diz que subverte a palavra inveja, pois inveja branca é uma inveja boa, e inveja é uma coisa ruim. Quando você coloca esse adjetivo “branca”, fica como se fosse uma coisa boa. Então, é um termo racista que diz que a inveja boa é uma inveja branca. Então, eu peguei essa mesma subversão e coloquei atrás de “bondade”, pois a bondade branca é uma bondade ruim, que é parecida com aquela frase: “Deus me livre da maldade de gente boa”.
Então, eu coloquei esse nome, esse título, tentando representar essa falsa benevolência da branquitude para com, principalmente, as mulheres negras que lhe servem. Nem sempre apenas como empregadas domésticas, mas em todos os lugares em que a gente vai as pessoas brancas estão sendo servidas por mulheres negras. Você chega no aeroporto, você vai comer um pão de queijo, é uma mulher negra fazendo aquele pão de queijo; vai numa escola particular, são as mulheres negras que estão limpando.
E as pessoas brancas, como eu, elas têm muito uma ideia de que elas são boas, de que elas estão fazendo algum bem, quando elas concedem migalhas dos seus privilégios. Então, eu construí personagens com base nessas vivências, no que eu aprendi ao longo de muitos anos estudando relações raciais, lendo os livros, principalmente de Lélia Gonzales, minhas duas grandes influências são Lelia Gonzales e bell hooks, que são as que eu mais gosto na sociologia das mulheres negras, e a Toni Morrison, que é uma romancista, e a Pauline Chiziane e outras escritoras. Eu aprendi muito com elas e fui tentando trazer isso para a realidade brasileira e construí uma tragédia, que tem uma protagonista linda maravilhosa, que é irmã da Leidiane, que é uma personagem que eu adoro, que não existe mas existe, ela é muito incrível.
Aí, eu construí uma história que se passa na Capital Federal, do final dos anos 1980 até os dias de hoje. É uma saga! E a minha protagonista é uma verdadeira heroína. Ela é uma rainha e tudo acontece com ela. Então, ela é como se ela fosse o arquétipo da mulher negra que sofre todas as opressões, todas não, mas muitas opressões. E como que ela lida - a partir de pesquisa de campo e de leituras também – e quais são as estratégias que ela foi usando para conseguir sobreviver e, mais do que sobreviver, reinar. Porque ela reina, em algum momento ela reina. Então, ela consegue ser mais do que apenas uma sobrevivente, porque ela é uma pessoa extremamente inteligente, ela é acima da média, realmente, é uma uma pessoa que tem uma inteligência acima da média, ela tem uma relação com os livros, então, ela constrói uma estória em cima disso, que seria uma improbabilidade, mas aí você vai ver que não, é porque ela foi construindo as próprias oportunidades e levando rasteira, levando rasteira e levando rasteira. E, apesar de tudo que aconteceu com ela, com a família que ela construiu, ela foi dando jeitos na vida dela.
Então, é isso. É uma história muito real, que eu chamo de tragédia à brasileira. Embora seja uma ficção, é uma história muito real, muitas pessoas se identificam. Ela tem uma parte, no começo dela, que traz bastante o sabor do modo de vida brasiliense dos anos 1990, de como que era essa cidade, de como as pessoas viviam nela. Que é uma coisa que não existe muita literatura que fale de Brasília dessa forma, a gente vê muito de São Paulo e do Rio. E aí eu quis fazer isso também, trazer os elementos de Brasília.
Então, o "Bondade branca" é um livro em que, digamos assim, a vilã, a grande vilã é inspirada na minha família, é inspirada em mim, que sou uma pessoa branca. Só que a protagonista é a mulher negra. Enfim, o Brasil precisa acabar com certas coisas e eu acho que a literatura ela ajuda a gente a ver isso com mais clareza. Então, a gente precisa ver que esse modelo de trabalho doméstico precisa acabar, que o sistema prisional precisa acabar. Que certas formas, certas relações e certos modos de enxergar o outro têm que ser transformados. E que isso não vai acontecer a partir de uma pessoa como eu, vai acontecer a partir de pessoas que estão ali sofrendo com isso. Mas, como eu faço parte disso, também é meu papel ir lá e mostrar a minha vergonha.
Então, as minhas amigas, elas falam: “Nossa, seu livro é muito incômodo”. E eu falo: - “Ué, ele é incômodo para mim também, é incômodo eu ir lá escrever, pegar coisas que aconteceram na minha casa e colocar lá no romance. Coisas que aconteceram na casa das minhas amigas e coisas que eu vi, então eu acho que a gente precisa fazer esse exercício. O livro também é um exercício para mim, de falar sobre relações interraciais de um jeito que me envergonha. Mas eu acho que é necessário, a gente tem que fazer isso. Muitas pessoas falaram: “Você tem não tem medo, você sendo branca, de falar sobre isso?”. Eu falei: “Olha, não, não tenho medo”. Porque eu vou fazer o quê? Eu vou fingir que isso não existe? Eu vou escrever um livro sobre o quê? Então? Eu não tenho outra coisa para falar. Eu acho que isso funda a nossa existência no Brasil.
Eu sou uma mulher feminista, me considero feminista, eu acho importante a emancipação da mulher. Mas eu vou ser feminista, eu vou me emancipar, tendo uma empregada negra cuidando dos meus filhos? Isso é totalmente incoerente, entendeu? Isso não vai dar certo, não é uma emancipação total, isso é uma transferência de opressão, a opressão que eu não quero receber do homem, em vez de enfrentar ele, eu transfiro para outra pessoa. Então, eu acho que eu escrever esse livro e levar isso para pessoas que são como eu pode ajudar a trazer esses elementos a uma discussão.
Então, eu já recebi críticas por causa disso: - “Ah, você está falando sobre o assunto e você é branca”. Eu falei: - “Sim, mas leia meu livro e veja a forma como eu estou tratando isso”. Se a pessoa ler e quiser criticar, ela tem o direito de criticar, mas eu não vou deixar de fazer por causa disso. Então, o livro está aí, ele é o dono da editora Terra Redonda, uma editora pequena, que felizmente me abraçou.
Este livro, também submeti ele ao prêmio Carolina Maria de Jesus. Ele teve uma nota bastante boa, não ganhou o prêmio, porque foi bem concorrido, mas ele ficou ali, no prêmio a nota máxima era 30, ele tirou 24. Conversei com algumas pessoas que foram juradas, elas falaram que todos os livros que tiveram nota acima de 22 são livros excelentes. Então, já fiquei muito feliz com isso. Então, ele passou por esse escrutínio, também. Passou por essa avaliação e ele está aí.
Enfim, tem personagens maravilhosas, a Leidiane, tem homens negros, mulheres brancas e homens brancos, também. Ele tem uma coisa de vilanizar um pouco os brancos, na questão de de trazer o arquétipo do machão, do delegado, da perua. E o arquétipo da trabalhadora que busca sua liberdade, que constrói a sua vida, apesar de tudo. Mas também tem o lado humano das pessoas que são boas e são más, porque todo mundo que é bom não é bom o tempo e todo mundo que é mau não é mau o tempo todo.
Mas eu acho que a gente já tem, na literatura, muitas heroínas brancas, muitas protagonistas brancas, muitos protagonistas homens brancos. Então, eu quis dar uma cor de heroína para essa protagonista negra. Ela tem uma trajetória heroica, trágica e heroica.
"Gabriela, como é que você usou as cartas que você leu nesse romance?"
Eles mandavam as cartas para a Comissão de Direitos Humanos. E tinha cartas que tinham nomes, tinha cartas que eram anônimas. Como eu usei? Eu peguei principalmente quais os temas que eram mais frequentes, quais eram as reclamações que apareciam muito. Então, a primeira delas, que às vezes as pessoas não acreditam nisso, era a comida. Uma das formas de torturar os detentos é com a comida. Tinha vezes que serviam comida azeda, comida com fezes, comida com larvas. A pessoa com fome e eles deixam a comida azedando na cara dela durante 5 horas e ela sem acesso à comida, que ela vai comer depois de ficar azeda e toda suja. Então, a reclamação primeiro era a comida. Depois, eram os cuidados médicos e depois a questão das visitas, porque eles torturam também impedindo visitas e também maltratando as mães. Então, eles submetem as mães a situações degradantes. Isso é muito ruim para os detentos, eles sofrem muito quando as mães deles passam por isso.
Uma coisa que aparece muito ali é a punição que o sistema prisional causa a quem não é bandido. A mãe, ela não cometeu nenhum crime, mas ela está sendo duramente punida pelo sistema prisional também. Então, as cartas refletem muito isso e a luta por sobreviver. A coisa do interno é sobreviver, ele não quer subverter o sistema, ele não tem a menor condição de se rebelar. Porque aquilo é uma masmorra e eles estão tentando sobreviver. A pior coisa que tem na nossa sociedade é isso, é feio demais, é horrível, é muito sofrido.
Então, foi assim que eu usei, eu fui pegando as coisas que eram mais recorrentes e coloquei nessas cartas que estão dentro do livro. Tem uma parte que são cartas do filho para a mãe e coloquei dentro do livro esses assuntos, também com esse intuito de mostrar: “Olha o que estão fazendo, aqui olha como que é.”
Então, é uma parte que toda vez que eu releio, eu choro. É muito duro, assim. E eu me lembro, claro, das mães reais que estavam ali na minha frente e sofrendo. Tinha uma mãe de quem sempre me lembro, na carta ela falava que o filho dela estava doente e ela mandava o remédio e o remédio não chegava. A denúncia dela era essa: que ele estava com uma pneumonia e não tinha acesso ao remédio. Ela comprava antibiótico com o salariozinho de merda que ela ganhava, ela não tinha dinheiro para comer e comprara o antibiótico. Chegava lá, entregava na Papuda, e eles não davam o remédio para o filho. Ela falou assim: - “Eu só queria poder cuidar do meu filho doente”.
Então, quem tem filho sabe o que é ter um filho doente e você não poder cuidar dele. Aí eu quis contar isso nesse livro, para trazer para as pessoas o nível de sofrimento que é e quão inaceitável é que a gente tenha um sistema prisional como esse que existe no Brasil. Tem muitas outras formas de você resolver a questão da criminalidade, eu não preciso sobre isso, as pessoas sabem. Mas é inaceitável o sistema prisional. Então, foi a partir disso que eu quis começar a escrever o livro. Foi assim que cheguei nesses assuntos, a marmita, a comida. Os agentes pegam o biscoito e pisoteiam os pacotes e depois entregam só a farinha, aí a pessoa tem que comer aquela farinha, porque senão morre de fome. Então, gente, é muito desumano e desumaniza não só o detento e não só a família dele, mas o próprio agente penitenciário. Ele fica profundamente desumanizado nessa realidade.
Quanto tempo você trabalhou nesse livro?
Acho que demorei um ano, fui escrevendo aos poucos e demorei um ano. E ao mesmo tempo que eu ia escrevendo, eu fui lendo romances e livros, principalmente do existencialismo negro afrobrasileiro e africano, aqueles livros sobre filosofia Ubuntu e romancistas africanos. Porque, como eu sou branca, a gente tem uma cultura muito individualista, a gente não alcança certos modos de ser que vêm de uma tradição africana muito bonita que relacionada à nossa língua. A Lélia Gonzales fala muito sobre isso, que está muito presente no português e na transmissão oral. Está muito presente na sabedoria das mulheres negras brasileiras, É uma tradição africana. Eu estudei muito isso, enquanto eu escrevia o livro, para eu poder construir a personagem da Lucila, que é a personagem principal, trazendo essa carga ancestral africana de uma forma que seja coerente com uma vida brasileira e que seja mesmo autêntica. Então, tem um momento em que ela vira manicure. Então, eu fui em muitos salões e fiquei conversando com as manicures, sabendo a história delas. Então, eu trouxe muitas pessoas que eu conheci para ela. Eu também
treinei capoeira muitos anos e muito disso está na capoeira, nas entrelinhas das músicas da capoeira. Eu também já fui flautista, toquei muito em roda de samba. Participei de muito coletivo de samba. A cultura afrobrasileira tem alguns elementos que eu acho que é uma filosofia existencial preta que é diferente da nossa filosofia existencial, é uma filosofia muito mais humana. Eu acho que ela oferece uma crítica ao capitalismo que às vezes é mais incisiva do que o próprio marxismo, então gosto muito disso. Eu sou muito interessada nisso. Então, eu fui por isso que eu demorei um pouco, porque eu fui escrevendo e lendo.
Eu li um livro da Paulinne Chiziane, “O alegre canto da perdiz”. O final desse livro é um final redentor e ele tem um perdão muito grande, um perdão para uma violência inaceitável. Aí eu estava num clube de literatura e uma mulher argentina que estava participando do clube falou do livro: “O livro é maravilhoso, mas esse final achei estranho, porque esse livro de perdão não existe”. Quando ela falou aquilo eu pensei: - “Gente, eu acho que é a gente que não entende esse nível de perdão. E nós precisamos aprender. Se ela fez um livro e colocou esse nível de perdão, por que que eu não tenho esse nível de perdão? O que está faltando para mim? Não é o que está faltando para ela. É o que está faltando para mim, que sou da civilização ocidental, por que que eu não consigo entender esse nível de perdão? E eu falei: “Esse nível de perdão existe”. E até ele falou, quando leu o meu livro: “Mas essa sua protagonista não tem ódio”? Eu falei: “Não, ela tem um outro jeito, é outra coisa, ela é uma mulher negra, ela é uma pessoa que tem um outro nível de perdão, ela não é igual à gente, não é igual o Camus, não é igual aos filósofos europeus”. Eu adoro Camus, adoro os filósofos europeus, mas o existencialismo Ubuntu é diferente. Então, eu tentei trazer isso para as personagens e demorei um pouco porque eu fui lá, fui ler, e fiquei encantada. Então, foi isso.
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