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E o que a Sofia Manzano tem com isso?

Mouzar Benedito, na revista Fórum, 8/9/2022.

Escritor conta como "conheceu" a candidata do PCB à presidência da República


Sofia Manzano. Créditos: Reprodução/Facebook

Eu sempre digo que o curso de Geografia é o melhor que pode existir para quem quer entender o mundo. Estudei na USP, onde entrei em 1967, e em poucos meses já era outra pessoa, entendendo melhor o que se passava, tendo contato com ideias de estudiosos em tudo quando é área possível - na parte rotulada como Geografia Humana estudamos demografia, sociologia, história, economia (o que inclui comércio, indústria, agricultura, pecuária, meios de transporte, circulação...). Na Geografia Física, geologia, solos, climas, geomorfologia... E mais: urbanismo, agricultura, cartografia (que exige conhecimentos de astronomia e matemática), biomas, meio ambiente...


E lá fiz muitas amizades que duram até hoje. Nos meus primeiros tempos em São Paulo, eu achava os paulistanos parecidos com os ingleses de filmes ou romances, que só conversavam com alguém se fosse formalmente apresentado. Os paulistanos mudaram, hoje são acessíveis. Não tanto quanto os baianos, por exemplo, mas são.


Logo no vestibular, que na época era feito no próprio prédio de Geografia e História, um monte de veteranos estava lá, para nos dar apoio. No dia em que fui ver o resultado - fixado no vidro do “centrinho”, a nossa entidade estudantil, parte do Grêmio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras - e lá estava um bando de veteranos comemorando conosco.


Lá pelas 9h30 da noite peguei o ônibus para voltar pra casa, na área central da cidade, um dos veteranos veio conversar comigo e ficamos sabendo que morávamos relativamente perto, ele descia um ponto antes de mim. Pois fez questão de me apresentar a família dele, que me recebeu festivamente: pai, mãe e irmãos.


Durante o curso, fazia parte do currículo um certo número de excursões de estudos de Geografia Humana e outro tanto de Geografia Física. E eram viagens que podiam durar muitos dias; aproveitava-se feriados prolongados e férias. E nós mesmos, estudantes, quando nos interessávamos por um assunto que não estava no currículo, nos reuníamos para estudar (os corredores eram cheios de grupos estudando e discutindo) e até fazer excursões de estudos, sem professores. Isso reforçava nosso convívio e nossa amizade, de uma forma que nunca imaginava que poderia existir na metrópole dura, cimentada, superpovoada.


No segundo ano, em 1968, lá estava eu no papel de veterano, recebendo vestibulandos, incentivando, e criando novas amizades. E acho que foi nessa turma que entraram algumas das pessoas que me fizeram escrever isso, pessoas boas, estudiosas, ávidas de conhecimento e com vontade de mudar o mundo. Entre elas, a Cidinha e o Mário, que pouco depois começaram a namorar e se casaram.


A casa deles era um lugar de estudos e amizades. Quando queríamos discutir um assunto que não estava muito claro, seja de geografia, de política ou qualquer outro, pegávamos tudo que havia pra ler sobre esse assunto e depois, numa sexta-feira à noite ou sábado de manhã, nos reuníamos lá e ficávamos até domingo à noite.


Em 1971, meu último ano na faculdade, resolvemos conhecer as ruínas da primeira usina siderúrgica do Brasil, a Fundição Ipanema, perto de Sorocaba, que funcionou de 1810 a 1926. E lá fomos, um grupo de umas dez pessoas, de trem. Foi como um piquenique. Uma estação não era muito longe da usina, mas tínhamos que atravessar uns pastos e subir um morro. A Cidinha estava grávida, barriguda, perto de dar à luz, mas isso não era problema. Só não podia correr.


Na volta, eis que uma vaca brava nos viu e veio para o ataque. Aí sim, era um problema para a Cidinha. Ficamos meio toureando a vaca até ela subir numa pedra, fora do alcance da vaca. Depois subimos também e ficamos lá um pouco, até a vaca ir embora.


Uma aventura divertida, achamos. Pegamos o trem de volta, alegremente, conversando sobre o tal piquenique e sobre a produção de ferro no Brasil, o significado daquela fundição etc.


No dia seguinte, tivemos a notícia: a Cidinha deu à luz, nasceu uma menina. Que recebeu o nome de Sofia. O casal continuou tendo filhos. Depois de formados, tomamos rumos diferentes, morei no interior, e tempos depois soube que a Cidinha, o Mário e cinco filhos moravam num sítio em Santa Isabel, início do Vale do Paraíba.

Virei um frequentador do sítio. E outros amigos também, quase todos geógrafos. Havia espaço para todos. E lá conversávamos como nos tempos de estudantes, sobre assuntos dos mais variados: música, política, economia...


O interessante era que as crianças participavam dessas conversas, ouviam com atenção, eram muito interessadas. E eram estimuladas pelos pais. Crianças inteligentes, bem criadas, participativas, estudiosas, amigas. Eu sabia que todas elas dariam bons frutos, e deram.


A mais velha, Sofia, Sofia Manzano, que nasceu depois da nossa aventura na Fundição Ipanema, agora é candidata a presidente da República pelo PCB sabendo que não vai ganhar, claro. Mas não é uma candidatura folclórica, é difusora de ideias e propostas. Minha preferência política é mais para Bakunin, mas respeito os marxistas.


Sobre as eleições, podem achar que é contraditório um sujeito com ideias anarquistas votar. Nos tempos de Arena e MDB, votava só porque era obrigatório, anulava o volto, aproveitando para escrever frases de protestos nas cédulas de papel (isso, lamento não ser possível em urnas eletrônicas, hehehe...). Depois, brincando que “todo anarquista comete uma besteira na vida” e citando a criação do PCB, participei da criação do PT, fui militante, torcendo para que o PT não acabasse por “domesticar a esquerda”. Militei nele direto, até sair do partido no final de 1994, achando que isso tinha acontecido, em parte.


Depois, continuei votando, sempre na esquerda. Enquanto não chega uma sociedade mais justa, socialista e democrática pelo menos, se a gente não votar, é pior. Não deixar de sonhar e trabalhar por um mundo melhor não significa ignorar este e o que acontece nele.


Se as eleições de 2022 fossem “normais”, votaria na Sofia. Como não são, meu voto em 2 de outubro vai para tentar tirar enquanto antes a praga que tomou conta do Brasil.


Mas sinto que tudo valeu a pena. A candidatura da Sofia me fez refletir sobre isso.


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Mouzar Benedito é autor da Terra Redonda Editora, que publicou "O Voo da canoa", escrito em parceria com o ilustrador e cartunista Ohi.

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