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Dona Norma e o racismo ambiental

Um texto sobre um doguinho caramelo com medo, uma mulher desolada, a salvação do planeta, o racismo ambiental e mais.


Gabriela Tunes


Essa foto da desolação está redemoinhando nos meus neurônios desde ontem. A Dona Norma de Morais perdeu tudo na enchente, e ela e o doguinho caramelo não quiseram sair de casa até as águas cederem. Também, pudera. Ela viu serem afogados anos de trabalho muito duro, para ter cada item que a enchente destruiu. Uma mulher negra que cuida de sua família, incluindo o doguinho, acima de tudo, é um arquétipo fundamental do povo brasileiro. E sua desolação, idem. E a cara de medo, e de confiança total do doguinho nela, idem. Eu moro no mesmo país que ela, tão tropical e paradisíaco para mim, tão perigoso e ameaçador para ela. Se eu morasse no Rio de Janeiro, eu não estaria como ela, porque o bairro onde eu moraria tem estrutura urbana que garante que as chuvas torrenciais não invadam as casas. Tenho CERTEZA disso. É RACISMO AMBIENTAL que chama esse troço, e está umbilicalmente ligado às desigualdades, não apenas, mas também, ambientais, marcas de nossa civilização.


Muito se associa o ambientalismo a pessoas protestando com cartazes por coisas como extinção de espécies, preservação da Amazônia, redução de emissões de gases e do consumo. Tudo isso é crucial ao meio ambiente. Mas tão importante quanto é a chamada agenda marrom, que não costuma ser associada à salvação do planeta. O saneamento básico, a garantia de moradia em locais seguros e limpos, livres de pragas, doenças e tragédias climáticas, é tão importante ao meio ambiente quanto a agenda verde. Proteger o meio ambiente é muito mais do que se indignar que lugares lindos onde ricos passam férias ou praticam esportes radicais estejam ameaçados. É preciso aprofundar essa análise, e entender que a pobreza gera degradação ambiental, que, por sua vez, amplifica a pobreza, criando um ciclo vicioso que atinge uma parcela específica da população: a preta e pobre. Não que pessoas como eu, que nado em águas abertas, e me preocupo demasiado com os paraísos aquáticos dos quais desfruto, estejamos erradas. Isso seria de um simplismo ridículo. Mas é preciso também se indignar com a falta de saneamento e de estrutura urbana da quebrada da sua cidade, mesmo que você nunca vá lá. No discurso ambientalista, sempre se diz que devemos nos preocupar com as gerações futuras, com pessoas que sequer nasceram. Essa ética não passa de hipocrisia se não formos capazes de nos preocupar com as pessoas que estão vivas do nosso lado.


Os problemas ambientais atingem mais uns do que outros, e é necessário agir para mudar esse desbalanço. Eu, que nunca perdi uma geladeira e um sofá para a enchente, que ralei bem menos do que a Dona Norma para tê-los, jamais alçarei estatura para enxergar a enormidade dessa mulher, que, no dia seguinte da enchente, se levantou, passou um café e começou tudo de novo.


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Gabriela Tunes é escritora, musicista, nadadora e consultora legislativa na Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal. É autora do livro "Máscaras no Varal" e do conto A quarentena reversa, publicado na coletânea "Contos da Quarentena", ambos à venda no site da Terra Redonda.

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