Por Paulo Maldos
O padre claretiano catalão Pedro Casaldáliga chegou ao Brasil em 1968, aos 40 anos de idade, para atuar numa das regiões mais isoladas e esquecidas pelo Estado brasileiro, São Felix do Araguaia, no norte do estado do Mato Grosso (Foto: JOAN GUERRERO)
Durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), o menino Pere Casaldàliga i Pla, nascido em 16 de fevereiro de 1928, na pequena cidade de Balsareny, na Catalunha, perdeu seu tio, o padre católico Luís, fuzilado por um grupo de militantes republicanos que o acusou de colaboração com as forças franquistas. Diante do sofrimento de sua mãe, pela perda do irmão religioso, o menino se comprometeu a assumir o lugar do tio morto. Assim tem início a inserção histórica da vida religiosa de Pedro Casaldáliga.
Em 1968, aos 40 anos de idade, chega ao Brasil o padre claretiano Pedro Casaldáliga, para atuar numa das regiões mais isoladas e esquecidas pelo Estado brasileiro, São Felix do Araguaia, no norte do estado do Mato Grosso. Aos poucos, o religioso dá início ao trabalho junto às comunidades ribeirinhas e indígenas e vai tomando consciência da brutalidade que sofrem, principalmente por parte dos grandes fazendeiros, grileiros de enormes extensões de terra, que desmatavam sem limites para colocar o gado e usavam do trabalho escravo impunemente.
No final dos anos 60 e princípio dos anos 70 a Amazônia, vista oficialmente como “terra sem homens”, se torna a nova fronteira a ser explorada, com o estímulo governamental à sua ocupação por “homens sem terra”, geralmente pequenos proprietários da região Sul, e por grandes empreendimentos com subsídios da SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). Essa ocupação, desordenada e violenta, era baseada na expulsão sumária dos posseiros que lá viviam há décadas, com o recurso à pistolagem e ao assassinato dos trabalhadores e na obtenção fraudulenta de títulos de terra e de recursos públicos.
Neste contexto tem início o conflito do padre Casaldáliga com o latifúndio da Amazônia, na forma de trabalho missionário, que vai se transformando também em denúncias junto às instâncias da Igreja Católica e junto aos órgãos de imprensa nacional e internacional. Com o passar do tempo e com a sua atuação contundente na região, padre Casaldáliga passa a se tornar objeto de ódio dos fazendeiros e de autoridades governamentais, mas isso só torna suas atitudes cada vez mais claras e posicionadas, sempre em favor da população explorada e identificando publicamente os criminosos.
Em 1971, o padre Pedro Casaldáliga é nomeado Bispo da Prelazia de São Felix do Araguaia pelo Papa Paulo VI, o que significou um reconhecimento da importância de sua atuação e um apoio maior da hierarquia da Igreja Católica ao seu trabalho junto às comunidades. Neste momento, lança a Carta Pastoral “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”, descrevendo a situação da terra na Amazônia, a violência que ali imperava e os desafios para o trabalho pastoral.
Nos anos seguintes, bispos do Centro-Oeste lançaram o documento “Marginalização de um povo, o Grito das Igrejas” e bispos do Nordeste também lançam um documento com as mesmas características, chamado “Ouvi os clamores do meu Povo”, o que fez a repressão na época suspeitar de “uma ação subversiva planejada”, chegando a torturar presos políticos na época para que revelassem tal “plano subversivo”.
A atuação cada vez mais articulada dos bispos comprometidos com os se-tores populares, do campo e da cidade, passa a ser fortalecida com a criação de pastorais específicas, entre estas o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em 1972, e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1975. O enfrentamento ao genocídio dos povos indígenas, promovido pela ditadura militar, e a luta contra a violência que se abatia sobre os povos do campo crescem, com o protagonismo de Dom Pedro Casaldáliga que, para tanto, se manifestava através do trabalho pastoral, através da denúncia nas mídias nacional e inter-nacional, como através da poesia.
O fato da região do Araguaia, no sul do Pará, se tornar palco do mais prolongado processo de conflito e re-pressão por parte das Forças Armadas, ocorrido durante a ditadura militar, episódio conhecido como Guerrilha do Araguaia (1972-1974), levou a violência policial-militar para a Prelazia, atingindo todos os agentes de pastoral, presos e torturados, e o próprio bispo Dom Pedro Casaldáliga, detido em sua casa por vários dias e interrogado por oficiais militares, que desejavam com-provar a colaboração da Igreja de São Felix do Araguaia com os guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil.
Durante a conflagrada década de 70, Dom Pedro Casaldáliga ainda viu um padre da Prelazia, o francês François Jentel, que atuava junto aos posseiros, ser preso e expulso do país, e testemunhou o assassinato do padre João Bosco Penido Burnier, que estava ao seu lado quando um policial disparou a arma, num momento em que ambos se dirigiam à delegacia de polícia do município de Ribeirão Cascalheira, de-vido a denúncias de que ali havia mulheres presas sendo torturadas.
Os anos 80 encontram uma América Latina que buscava derrotar as dita-duras militares, que se espalharam pelo continente nas décadas anteriores, por um lado, e, por outro, povos centroamericanos que empreendiam processos revolucionários, de caráter socialista e antiimperialista, na Nicarágua, El Salva-dor e Guatemala. A Igreja Católica estava muito dedicada à defesa dos direitos humanos e dos direitos à autodeterminação destes povos e Dom Pedro Casaldáliga se torna uma referência nesta defesa, com viagens freqüentes à região centroamericana e visitas, inclusive, à região nicaraguense, onde os Estados Unidos apoiavam os contrarrevolucionários, os “contras”, que realizavam ataques brutais às comunidades camponesas.
Foi neste contexto que Dom Pedro Casaldáliga perdeu um grande amigo, Dom Oscar Arnulfo Romero, Arcebispo de San Salvador, El Salvador, defensor dos direitos humanos num país em guerra, que denunciava a repressão do regime e foi assassinado, em 24 de março de 1980, por forças da extrema-direita quando rezava a missa numa comunidade religiosa.
Suas viagens pela América Central incluíram uma visita a Cuba, onde foi recebido por Fidel Castro e quando pode conhecer e dialogar a respeito dos valores cristãos, sobre a Teologia da Libertação e suas relações com os valores e práticas dos revolucionários que ousaram construir o socialismo no país num contexto de agressão e ameaça constantes do império norte-americano e com um histórico de relações complexas e conflituosas com a Igreja Católica. Em seu encontro com Fidel Castro, este lhe pediu que deixasse na Ilha, para o Museu da Revolução, suas sandálias, em troca de um par de botas militares cubanas. Após esta visita, declarou: “Também sou testemunha das conquistas que o povo cubano alcançou na saúde, na educação, na produção. Temos que abrir o coração e o Evangelho a essa ilha admirável.”
Junto com sua prática pastoral, tanto na sua São Felix do Araguaia como no Brasil e na América Lati-na, Dom Pedro Casaldáliga nunca deixou de produzir literatura e poesia, tendo criado com o poeta Pedro Tierra a Missa da Terra Sem Males e a Missa dos Quilombos, a primeira dedicada à memória e à luta dos povos indígenas, a segunda dedicada aos povos escravizados e sua luta pela emancipação. Outra trincheira cultural para ele era a elaboração anual da Agenda Latinoamericana, uma coletânea de textos sobre a conjuntura do continente, sempre com um tema central sendo abordado em cada edição, e com referências de datas e episódios significativos para história da América Latina, do ponto de vista dos setores populares.
Dom Pedro Casaldáliga nunca ficou distante de seu lugar fundamental, São Felix do Araguaia, nem se afastou das causas populares desta região, tendo participado de todas elas, fortalecendo-as e solidarizando-se com os movimentos populares, protagonistas centrais na sua atuação política. Em Ribeirão Cascalheira criou o Santuário dos Mártires da Caminhada, local de celebração das lutas populares e de memória e reverência aos que nelas tombaram.
Devido ao seu compromisso radical e fraterno com os setores populares, Dom Pedro Casaldáliga teve o reconhecimento e o respeito dos movimentos populares de todo o país e da América Latina, assim como a suspeita e a perseguição por parte de diversos governos e oligarquias e, por vezes, questionamentos disciplinares por parte da hierarquia da própria Igreja Católica, em seus últimos períodos de conservadorismo papal e de cerceamento aos defensores de uma instituição claramente comprometida com as lutas populares.
Ao mesmo tempo em que foi radical e intransigente nas suas opções de vida e de prática pastoral, Dom Pedro Casaldáliga nunca se fechou ao diálogo e à cooperação com o poder público, sempre em busca de pontos de convergência que resultassem em benefício, em termos de avanços nas políticas sociais, para os setores populares mais vulneráveis do campo e da cidade.
Isso ocorreu durante os governos Lula e Dilma, quando Dom Pedro Casaldáliga, já fragilizado pelo Mal de
Parkinson e pela idade, já retirado como Bispo Emérito de São Felix do Araguaia, morando em sua casa humilde na cidade e região que escolheu para viver e atuar, mantinha as portas abertas para visitas e diálogos em defesa dos direitos da população.
Essa postura de desprendimento ainda lhe custou mais uma ameaça de morte, quase no final da vida, em 2012, quando o governo Dilma, obedecendo a decisão judicial, promoveu a retirada de grandes, médios e pequenos invasores da terra indígena Xavante de Marãiwatsédé, localizada naquela região do Araguaia. Este crime de invasão organizada, que teve suas origens durante a ditadura militar, em 1966, com a expulsão da comunidade indígena de seu próprio território para formar o maior latifúndio do país na época, a fazenda Suiá-Missu, havia sido fartamente denunciado por Dom Pedro Casaldáliga, em entrevistas, documentos e poesias.
Quando o governo federal finalizava o processo de reparação à comunidade indígena, devolvendo a terra aos Xavante, o Bispo Emérito foi acusado de ser o mentor intelectual daquela ação de governo e um plano para assassiná-lo foi descoberto, tendo que ser retirado de sua casa por alguns meses.
Dom Pedro Casaldáliga viveu e morreu sob o signo da revolução permanente. Sua vida foi uma caminhada incessante em busca de uma Terra Sem Males, sempre muito consciente dos males desta terra que o acolheu e onde inscreveu sua prática pastoral e sua incidência política. Sempre buscou a emergência e o protagonismo dos posseiros, dos trabalhadores, dos povos indígenas, dos camponeses, dos condenados dos campos e das cidades, na história brasileira e latinoamericana.
Peregrino e conhecedor de tantas terras, seu território preferido sempre foi a Utopia, desde sua Catalunha milenar até as aldeias e comunidades camponesas de sua Amazônia adotada, onde escolheu viver e morrer.
Dom Pedro Casaldáliga faleceu no dia 8 de agosto último, na Santa Casa de Batatais, São Paulo, e hoje está plantado à sombra de um pequizeiro em frente ao rio Araguaia, num cemitério de indígenas e posseiros, num último compromisso cumprido de unidade com aqueles que, em seu combate de toda uma vida, herdarão a Terra.
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PAULO MALDOS é psicólogo. Este artigo foi escrito em agosto de 2020 e publicado originalmente na revista Esquerda Petista.