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Como escreve Telma Scherer

Telma Scherer é professora de literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina e autora da Terra Redonda. (Entrevista publicada originalmente no site Como eu escrevo).


Foto: J. M. Terenzi


Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Não sou uma pessoa dada a rotinas continuadas, estou sempre reinventando meus hábitos – nem sempre com bons motivos e, muitas vezes, por necessidade. A única regularidade que se mantém na minha rotina matinal é despertar com fome, ávida por um café preto. Quase nunca

escrevo pela manhã. Gosto de realizar atividades físicas, pedalar até a praia, dançar, e também aproveito, por vezes, para ler os textos mais complexos e detalhados, nesse horário.


Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Escrevo de madrugada. É o horário em que ninguém interrompe os fluxos criativos. Pinto bastante, também, nesse horário, apesar de não haver a melhor luz. Escrevo, por vezes, durante a tarde e à noite, dependendo das possibilidades da rotina.

Não tenho rituais de preparação para a escrita. Escrevo em qualquer lugar: viajando de ônibus, num bar barulhento, na rua, onde puder. Se estivesse tudo organizado, em um local preparado para a escrita, em um horário que não é roubado do sono ou de outras necessidades, parece que ficaria mais difícil. Acostumei-me a lidar com as adversidades e escrever, sempre, apesar de não dispor de condições ideais, de não ter esse tempo, de ter outras preocupações urgentes, disputando o espaço com a escrita.


Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Escrevo em períodos concentrados, geralmente. Passo uma semana em um fluxo extenuante e, depois, preciso de um tempo para descansar (o texto se faz, também, nesse período, apesar de não estar escrevendo nada). Eu me proponho alguns objetivos, por projeto de escrita e, em momentos de muita intensidade, produzo o texto base. Depois, deixo o que produzi descansar e olho novamente só depois de um tempo. Também tenho uma prática mais dispersa de escrita de pequenos textos soltos, que não estão relacionados a um projeto, os quais guardo e, por vezes, depois de perceber características comuns entre eles, acabam virando uma proposta de livro. Apesar de escrever com frequência, não tenho uma meta de escrita diária, a não ser dentro dos períodos concentrados. Preciso desses blocos de produção, que me propiciam mergulhos, pois eu produzo melhor na exaustão e utilizo muito o cansaço como ferramenta criativa.


Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Vejo a escrita como pesquisa, mais do que a pesquisa como um auxílio ou um alicerce que serve à escrita. Não trabalho com esse procedimento de compilação de notas prévias, elaboradas como planejamento para um livro. Meu processo de elaboração do projeto não é muito objetivo ou racional. Vou armando o projeto a partir de experiências, mais do que de ideias prévias (ainda que essas experiências e sensações se liguem, muitas vezes, às leituras que faço). O projeto surge de uma necessidade interna ou, ainda, da própria prática de escrita, que responde a situações pontuais vividas, lidas e/ou observadas. Sinto como uma espécie de conjunto de coincidências a manifestação da intenção de escrever um livro, não uma decisão abstrata relacionada a elas. Ainda assim, meu processo é profundamente político, no sentido de que essa necessidade interna geralmente tem a ver com uma resposta a questões que me incomodam, com um posicionamento.

Também escrevo muito como exercício, cotidianamente. Escrever por escrever é muito bom como investigação de procedimentos, mas geralmente os resultados dessas práticas vêm a longo prazo, não no fragmento em si. Como projeto, sou movida pela necessidade, que é bastante espontânea e, por isso, geralmente não sinto essa dificuldade de começar. A pesquisa se dá na medida em que avanço na escrita. Reescrevo muitas vezes e o experimento de escrita vai me oportunizando as descobertas de muitas coisas. Nesse sentido, meu processo é experimental, além de investigativo, e não operacional. Não tive a experiência de escrever algo “por obrigação”, como tarefa, com um tema ou um tom previamente definidos. Creio que seria uma boa experiência, no sentido do aprendizado, mas a obrigação teria que ser externa pois, caso contrário, minha tendência seria essa de me entregar à descoberta o livro que virá, investigando-o.


Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

Tive uma experiência muito forte, com tudo isso, em um projeto específico, o primeiro romance longo que me propus a escrever, As avessas. Foram mais de dez anos, entre a primeira proposta, as múltiplas versões e as infinitas revisões e reescrituras. Entrei em um edital da Prefeitura de Porto Alegre, o Prêmio Décio Freitas, com a proposta da pesquisa, e um trecho inicial do romance, apenas. Fiz uma pesquisa prática, conversando com adolescentes das periferias da cidade, e uma pesquisa teórica, em manuais de escrita criativa. Em nenhum momento procrastinei – trabalhei além das minhas possibilidades, o que pode ser muito pior do que procrastinar. Na não-ação, muitas coisas podem germinar. Na sobrecarga, a gente fica cega para o que produz, se perde no texto, se desgasta. Ao longo dos anos, fui tentando, teimosamente, de todas as formas, resolver os problemas narrativos que propus no decorrer da produção, com múltiplas modificações na estrutura do texto. Acontece que a ansiedade e a própria dificuldade desses problemas, para o grau de desenvolvimento que eu possuía, na época, impediam-me de concluir o texto a contento.

Após múltiplos abandonos e retomadas, e com a maturidade que tantos anos de exercícios e de leituras propiciaram, finalmente consegui chegar à versão final, onze anos depois da primeira etapa, realizada com a pesquisa dos meses do prêmio. Ter sido pré-selecionada no prêmio SESC, durante esse processo, foi um encorajamento e, ainda, uma leitura crítica de uma escritora experiente, no final, auxiliou-me a acreditar que seria possível apresentar algo aceitável. Nos últimos dias de revisão do texto, ainda pensava em soluções alternativas. A interlocução com esses leitores competentes, ainda que distantes, e com um editor dedicado, foram essenciais para diminuir o trauma e a tensão gerada por esse livro.

Quando o romance estiver impresso, aposto que sentirei um certo vazio, uma vontade de arranjar novos problemas e inquietações – afinal, apesar da dor, das noites sem dormir, da ansiedade de dez anos, sinto que esse projeto foi o propulsor de muitas coisas boas. Afinal, se não fosse a derrota, a sensação de falência que eu senti, nos primeiros anos, eu não teria buscado tanto o aprimoramento e, confesso, talvez não tivesse feito as escolhas mais radicais e importantes que fiz: uma foi a performance “Não alimente o escritor” e a outra foi voltar à universidade, cursando uma segunda graduação e o doutorado ao mesmo tempo. Sou, portanto, muito grata a esse processo de escrita que, indiretamente, trouxe-me o que eu tenho de melhor, em meu cotidiano, hoje, incluindo a oportunidade de acompanhar, como docente, muitos processos criativos de alunos que vivem dificuldades próximas daquelas que vivi.

Os outros projetos de prosa que realizei não me custaram esse esforço, e nenhum trabalho de poesia trouxe esse tipo de inquietação, nem mesmo a minha tese de doutorado, que escrevi com enorme prazer. Acho que certos aprendizados são mais difíceis, mesmo, de acordo com o nível de familiaridade com os recursos que nos propomos a utilizar e com as características do projeto em si.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Reviso muito, geralmente. Em poesia, vocalizar é uma forma de revisar. Desde meu primeiro livro, Desconjunto, até o terceiro, Depois da água, fiz performances ao vivo dos textos, com ou sem aparato cênico, antes de concluir a versão impressa. Essas performances circulavam por espaços muito diversos, e já eram “produtos”, antes dos livros. Prefiro mostrar em performances a enviar pdfs para amigos ou publicar em redes sociais. Os amigos e as redes não são tão sinceros quanto uma plateia alheia e desconhecida, que você precisa cativar. Desenvolvi uma espécie de método compositivo que aliava a performance à finalização do poema, com exploração de variados suportes e materialidades. Por vezes, o livro impresso me decepcionou, pois não refletia a multiplicidade de experiências que as performances oportunizavam. Fui investigando essas coisas e descobrindo as peculiaridades de cada suporte. O Squirt e O sono de Cronos foram os primeiros livros que eu produzi sem uma performance prévia de poesia vocalizada, apenas experiências intermidiáticas que não incluíam a apresentação ao vivo, mas experiências matéricas sem a presença síncrona do público, especialmente aquelas das artes visuais. Ainda assim, mostrei para outras pessoas, e tive a oportunidade de dialogar com leitores competentes, antes de lançar os livros. Não dispenso os feedbacks, o olhar de fora, as ponderações alheias, seja nos projetos de poesia ou nos de prosa, os quais reviso silenciosamente e também em voz alta (sem público), tantas vezes quantas julgar necessário.


Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

A questão das mídias me interessa muito e a intimidade com o gesto sempre me moveu, seja o gesto da escrita à mão ou outros procedimentos de escrita, que lidam com materialidades expandidas e seus modos oportunizar possibilidades de criação. Comecei a escrever mais ou menos no mesmo momento em que descobri o teatro, de modo que a exploração do corpo se tornou algo muito próximo dos meus processos de escrita, desde a adolescência. Nem sempre, porém, quero explorar suportes e materialidades, pensar em três dimensões, por mais que a escrita seja um ato físico. Gosto de sair à noite com um caderninho e preenchê-lo todo antes de digitar os textos ali produzidos, pensando sobre o que surgiu. Gosto, também, de abrir um documento do word, no intervalo entre uma aula e outra, rascunhar algo e depois salvar na pasta que me parecer mais adequada, quando já tenho divisões em pastas de textos que se relacionam a um projeto particular. Gosto também de passar muitos dias no mesmo arquivo, revendo o que foi escrito no dia anterior e completando, investigando soluções para o texto, nos períodos concentrados.

Sinto que as narrativas breves ganham quando escritas de um só fôlego (sempre no computador) e depois revistas, e que os poemas ganham quando produzidos em papel, depois digitados e reescritos a partir da sua exploração sonora. Digito rapidamente e creio que isso ajuda muito, pois certos textos precisam dessa velocidade, na primeira versão. Ao mesmo tempo, tenho um livro cheio de diagramas e anotações, o Entre o vento e o peso da página, que é um livro híbrido, com manuscrituras, desenhos, fotografias e outros trabalhos visuais.


De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?

Não sei de onde as ideias vêm, talvez do desconforto ou do espanto de estar viva entre tantos mortos. Creio que elas podem surgir a partir das leituras, do convívio e, principalmente, dos incômodos. Nunca pensei em cultivar algum hábito para me manter criativa. Acho que todo meu cuidado, até hoje, foi para manter-me viva e saudável, tanto quanto possível. Respirar, cortar grama e administrar a geladeira pode ser algo tão criativo quanto escrever. Dar aula é uma atividade que, muitas vezes, sinto até mais criativa do que a escrita, no sentido de que interfere no mundo, produz algo novo para outrem. O processo de escrita, entretanto, é meu modo de responder a muitas situações e, por mais que eu o abandone, ele retorna, junto com as limitações que a realidade me impõe, porque há muitas coisas que são terríveis, injustas e revoltantes e, frente a elas, sou impotente. O único que consigo fazer, para tentar extingui-las, é escrever. Não tenho outras armas. A escrita não é algo que eu busque, nesse sentido, apesar de considerá-la uma atividade fascinante. Sofri muito por conta da minha relação com a literatura. Hoje ela me dá um pouco mais de prazer do que de desprazer – o que me parece, por si só, uma glória. Quando era mais nova, era muito maior a sensação de impotência, e mais inconstante, e fugidio, o prazer possível nessa atividade. No caso, o que mudou positivamente, nesse sentido, foi o exercício, que pode ser visto como um hábito, sim. Mas o manejo com a palavra, o domínio técnico, não aumentam a criatividade, apenas diminuem o esforço.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

Meu processo foi se tornando mais livre e mais consciente, na medida em que fui perdendo o medo de propor desvios, de investigar, e deixei de me pautar pelo receio de não ser aceita. Assumi a derrota e o erro – abandonando, com isso, certas ilusões. Apontei, nas respostas anteriores, o que eu considero um relativo ganho no manejo com a palavra, através do exercício continuado. A prática trouxe uma consciência maior a respeito dos procedimentos e do ferramental literário – e dos meus limites, também, em relação a eles, bem como dos limites daquilo que eu proponho, em relação à aceitação e legitimação social. Acho que mudou o conjunto das minhas referências, também, que foram acrescidas de novas leituras e percepções a respeito do que se fez, historicamente, e do que se faz, hoje.

Se há algo sobre o qual me felicito, agora, ao fazer 42 anos, sendo que comecei a escrever aos 12, é saber que desenvolvo uma atividade que é favorecida com a passagem do tempo, para a qual a maturidade é um ganho, e o envelhecimento, uma dádiva. Quero ficar ainda mais à vontade com a palavra (em suas várias dimensões) para, nos próximos anos, produzir trabalhos que dialoguem e respondam às tantas inquietações que experiencio e ainda não tomaram forma – que são, em grande medida, inquietações coletivas, também, embora haja maneiras muito diversas de elaborá-las.

Ao retornar os primeiros textos, hoje, não percebo apenas os deslizes e as coisas que gostaria de alterar, como me ocorria há alguns anos. Procuro aplicar um olhar arqueológico para perceber, naquelas tentativas, aspectos que podem ser desenvolvidos, coisas que reapareceram nos trabalhos posteriores, pontas a amarrar nas próximas etapas. Costumo ser muito dura comigo e, portanto, redescobrir esses textos sem descartá-los em seu todo me parece um bom sintoma, na medida em que aponta para um futuro possível.


Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Tenho interesse em desenvolver projetos de prosa que partam das afetividades que não se coadunam com a ideia de família e que possuem uma consistência, uma continuidade no tempo. Já venho escrevendo textos breves sobre as falências afetivas a partir do cenário atual, mas gostaria de escrever também sobre autonomia, sobre os modos de organização afetiva que, afastando-se das formas pré-estabelecidas e compulsórias, podem oportunizar encontros tão plenos de vicissitudes quanto saudáveis. O modo como as relações se alteram de acordo com a condição social, a propriedade, a idade, e as referências culturais das pessoas me interessa bastante.

Ainda pretendo escrever um livro híbrido, entre prosa e poesia, contando uma história estruturada, o que seria o exato contrário do Lugares ogros, que é um “romance” que explora a dimensão da linguagem da prosa com uma estrutura poética, no sentido de subverter vários aspectos da narrativa, que são substituídos por procedimentos poéticos.

O livro que eu gostaria de ler e não existe, ou, ao menos, não conheço, seria um romance de memórias, que contasse a história dos anos de governo do PT, com protagonistas ligados ao hip-hop e/ou ao slam, um pouco ao estilo do que Conceição Evaristo fez com Becos da memória. Esse romance poderia contar a perseguição que essas pessoas passaram a sofrer, o desmantelamento das estruturas que foram criadas para ampará-las, e o contexto do golpe de 2016. Uma autora ou autor que acompanhou esse processo desde dentro poderia escrevê-lo, e eu teria vivo interesse em ler esse trabalho.

Acompanho muitos autores jovens e creio que eles terão muito a contribuir, ainda, no sentido das obras híbridas e expandidas, em meio impresso e digital. Gostaria de ler mais trabalhos que unam imagem em movimento, som e literatura, gestadas por quem já cresceu com internet disponível e com uma câmera no celular. Acredito que o modo de pensar as questões intermidiáticas dessa geração irá contribuir enormemente para as redescobertas do texto e das potencialidades verbais.

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