José Flávio de Oliveira, no livro Relatos de uma vida inteira (Terra Redonda)
Uma ação que ficou gravada em minha memória foi a expulsão pelos estudantes de um professor reacionário e dedo-duro da UnB.
Ricardo Roman Blanco era professor de História da América em um curso que não o de História, pois esse ainda não existia na UnB. Acho que era Economia. Ele tinha sido expulso da USP por ter falsificado um documento que apresentava novos limites para o Tratado de Tordesilhas, celebrado entre Portugal e Espanha, em 1494. Era seguidor e membro da Opus Dei, uma seita católica de extrema direita. Tinha como prática costumeira dedurar os estudantes e professores que julgasse serem subversivos. Todas as vezes que o Tribunal Militar se reunia para “julgar” estudantes ou professores, seu comparecimento era certeiro. Era Integrante do SNI (Serviço Nacional de Informações) e responsável pela preparação de artigos enviados ao jornal O Globo, que buscavam desmoralizar o movimento estudantil, inventando que seus integrantes viviam em festas, embriagando-se, consumindo drogas e as meninas se prostituindo.
Quando da doação de livros e visita do embaixador americano à UnB, em abril de 1967, os estudantes protestaram, as forças de segurança estavam presentes e o professor Blanco fechou as portas da Biblioteca, impedindo que os estudantes pudessem fugir. Muitos foram agredidos e alguns ficaram bastante feridos nesse dia. Depois de várias denúncias formais à reitoria sobre suas práticas persecutórias e o desvirtuamento de suas funções enquanto professor, os estudantes fizeram uma assembleia, na qual foi tirada a posição de que essa pessoa não mais podia conviver no campus da UnB, compartilhando da comunidade acadêmica.
Em 20 de Junho de 1968, foi enviado um ofício ao reitor, Caio Benjamim Dias, pedindo a exoneração imediata desse falso professor. Caso contrário, os estudantes informavam que seriam obrigados a tomar medidas drásticas. No entanto, o reitor, como sempre, não tomou conhecimento do pedido. Ante a ignorância da reitoria, os estudantes radicalizaram, fizeram uma assembleia e tiraram a posição de que ele deveria ser retirado à força da UnB.
Roman Blanco morava com a família no alojamento dos professores, conhecido como Colina, e sua sala ficava numa espécie de mezanino dentro da Biblioteca da UnB. Definido o dia da ação e notificando-se a reitoria devidamente sobre a data da medida extrema, fomos em passeata até sua casa, onde estavam sua esposa e o filho do casal, estudante de engenharia. Pediu-se, com a delicadeza possível, que ambos descessem até o saguão do prédio, retirou-se o mobiliário com o devido cuidado e se informou aos moradores que seriam levados para um depósito. Confesso que bateu certa pena, afinal aquelas pessoas estavam pagando por atitudes de outra.
Depois disso, a passeata continuou em direção ao local em que se encontrava o professor dedo-duro. Ele permanecia em sua sala na Biblioteca, covardemente fingindo não saber o que estava acontecendo. Ao ser retirado da sala, resistiu, agarrou-se às cadeiras, segurando uma pasta, com papéis voando, feito um frango velho, mas não teve jeito, foi levado nos ombros e pelos braços dos alunos até o monumento dos Dois Candangos.
Ali ocorreu uma espécie de julgamento público que decidiu por sua expulsão da UnB. Ao ser encaminhado à reitoria, que ficava ao lado do monumento, para as devidas providências, o reitor tentou intervir atabalhoadamente, tendo escorregado na rampa de acesso à reitoria, desequilibrando-se e quase caindo ao chão.
Na sequência, chegou o “super vice-reitor” José Carlos Azevedo, capitão-de mar-e-guerra da Marinha brasileira e integrante do Cenimar (Cento de Informações da Marinha), peitando o grupo com violência e arrogância, mas recebeu um chega para lá do Pirineus, que lhe bateu no cocuruto com uma bolsa de couro, na qual estava um despertador. O despertador desmontou-se e o jovem Pirineus continuou perdendo a hora. Acho que foi um excesso, mas com certeza decorreu de um vacilo, intencional ou não, da reitoria, e que cheirava a provocação.
Entre as inúmeras invasões da UnB, sobressaiu-se uma que ocorreu em 29/8/1968, pela violência gratuita, pela quantidade de policiais envolvidos, civis e militares, Dops, juntamente com soldados das Forças Armadas, Marinha, Aeronáutica, Exército e órgãos de segurança do governo, pelo aparato bélico, além das dezenas de viaturas, coletivos militares, tanques de guerra e helicópteros. O objetivo dessa invasão era prender todos os líderes do movimento estudantil: Mauro Bulamarqui, Cassis, Paulo Speller, Samuel Babah, Lenine, Prates e Honestino Guimarães, evidenciando, desde então, o endurecimento do regime que iria culminar com o decreto do AI-5, o governo Médici, a tortura e a morte institucionalizadas no país.
De madrugada, os moradores dos alojamentos, inclusive do “Anexo”, foram avisados de que haveria uma invasão e tínhamos que ir para o campus, defender o território livre da UnB e a integridade física da liderança. Fomos para lá e ficamos montando guarda na Feub, Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília, até a chegada das tropas do governo e o cerco da casinhola de madeira onde funcionava a sede da entidade. A invasão foi realizada com violência inaudita sobre os estudantes, apropriação de materiais de estudos, quebra de mobiliários, de carteiras e mesas de estudo, destruição de livros, bombas, tiros, quebradeiras de laboratórios.
No meio dessa baderna, eles atingiram com um balaço de fuzil a cabeça de um estudante da engenharia, o Waldemar Alves da Silva, que era aspirante da Aeronáutica, e um outro aluno que estava num fusca estacionado na frente da reitoria. O que recebeu o tiro na cabeça teve que passar por um período de tratamento, perdeu um olho, ficou entre a vida e a morte. Por sorte, recuperou-se. Mais de 60 estudantes foram presos nesse dia, brutalmente espancados e arrastados por veículos que saíam em loucas disparadas para lugares desconhecidos, principalmente as lideranças mais representativas, inclusive o Honestino, que foi responsabilizado pela expulsão do falso professor.
Quanto a nós, acantonados no barraco de madeira da Feub com a missão de fazer sua segurança, não tínhamos como ajudar. Após algum tempo, fomos todos obrigados a sair do local, sob a mira de fuzis e metralhadoras, passando por um corredor polonês, onde recebemos tapas na cara, cacetadas na cabeça e chutes na bunda. Depois, fomos levados para uma quadra de esportes que havia no campus, com as mãos para o alto. Ali foram chegando colegas que estavam nos outros alojamentos e nas salas de aulas. Ficamos amontoados até o meio da tarde. Muitas pessoas, país, mães, políticos, advogados e outros, aglomeravam-se em volta da quadra para protestarem contra aquela selvageria. Um espetáculo de indignidade, covardia e prepotência, próprio das ditaduras.
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José Flávio de Oliveira é professor e educador ambiental aposentado. Publicou sua autobriografia Relatos de uma vida inteira pela Terra Redonda. O relato acima é um trecho desse livro.
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