Embora as comunicações por áudio e vídeo sejam cada vez mais naturais, quem não sabe escrever está prejudicado – como alguém que olha a estrada diante de si e não sabe usar os pés para andar.
Como nenhum outro meio de comunicação anterior (os tambores têm pouco alcance, as cartas demoram para chegar, ao telefone muitas vezes o som da voz pode nos seduzir ou irritar mais que as palavras proferidas, a televisão é dos donos dos canais, a rádio em geral concessões fisiológicas), a Internet nos coloca interativamente em contato, superando barreiras de idade, sexo, cultura e, principalmente, distância geográfica. Aqui, cada um pode não apenas ler o que quiser quando tiver vontade, mas pode escrever, participar, ter os tais 15 minutos de fama que foram prometidos e ninguém dava…
As pessoas perdem um pouco certos referenciais, muitas vezes impedindo que indivíduos se conheçam e não se estranhem através da comunicação. Por outro lado, aqui os preconceitos podem aflorar mais do que na vida “real” (entre aspas pois o real é cada vez mais composto tanto de átomos como de bits), escancarados em textos escritos na hora, sem censura, deixando escapulir o lado mais podre das pessoas, em geral contido nas amarras sociais, no mundo virtual tão aparentemente quase inexistentes.
Mas no mundo virtual, remoto, online, digital, os preconceitos podem virar tigres de papel, bytes que se esvaem, pois colocam as pessoas, irremediavelmente, em íntimo contato umas com as outras. O contato delas aqui se dá através de seus cérebros, de suas almas, desprovidas de barreiras físicas. O racista pode perceber que está falando com o objeto de seu preconceito tarde demais: quando já houver feito amizade com ele. O jovem e o velho conversarão bastante até descobrirem a idade mútua. E duas pessoas carentes de calor humano e de amor, entes sensíveis que saibam traduzir em palavras suas emoções, poderão se apaixonar antes de se conhecer…
Tudo depende de saber escrever. Na vida “real”, as pessoas bonitas, bem vestidas e que saibam falar levam toda a vantagem nos primeiros contatos, ao passo que os tímidos, feios ou mal-vestidos precisam de muito valor para superar tais barreiras. Neste mundo virtual, a palavra é o “pó de pirlimpimpim” que transforma a gata borralheira em princesa – e sua meia-noite é quando a conexão fica irritantemente lenta ou cai, com problemas de Wi-Fi, 3G e que tais, e então aquele dispositivo na sua frente vira uma abóbora.
Aquele que não sabe pontuar, não tem poder de síntese das idéias, não conhece um vocabulário rico, esse “dança” na mão destas comunicações virtuais – embora, reconheçamos, os grunhidos virtuais (Saramago ironizou: “a tendência para o monossílabo como forma de comunicação: de degrau em degrau, vamos descendo até ao grunhido”), preponderam nas redes, propiciando um excelente radar das estruturas cognitivas dessa massa humana.
Esta nova valorização da palavra escrita é um fenômeno interessantíssimo. O que a humanidade criou – e nos deu de Shakespeare a Fernando Pessoa – parecia a muitos que a tecnologia iria matar, a palavra escrita seria substituída por cliques, a literatura trocada por ícones. O que se vê não é isso. Embora as comunicações por áudio e vídeo sejam cada vez mais naturais, quem não sabe escrever está prejudicado – como alguém que olha a estrada diante de si e não sabe usar os pés para andar. Claro que ainda falta muito para que os escritos na rede não sejam apenas um reflexo da enorme ignorância do escrever, que é o que mais se vê hoje, mas, como disse o poeta, “o caminho se faz ao caminhar”… O maior erro não é nunca a gramática desconhecida, o tropeço ortográfico, mas sim a falta de compreensão pelo outro, a incapacidade de achar as palavras para exprimir suas ideias.
Em praticamente todas as avaliações de capacidade de compreensão leitora (por exemplo, saber recuperar e reproduzir um pedaço de informação explicitamente declarada em um texto), o Brasil situa-se nas piores colocações entre todos os demais países. O desafio que temos enquanto nação é darmos vários passos adiante.
Fernando Pessoa disse que sua pátria era a língua portuguesa, e Paulo Freire escreveu, em seu A importância do ato de ler: “Este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele fazemos”.
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Carlos Seabra é diretor da Oficina Digital, criador de jogos de tabuleiro e digitais, autor de livros de literatura infantil e juvenil. Editor de publicações e produtor de conteúdos culturais e educacionais de multimídia e internet, palestrante, consultor e coordenador de projetos culturais e de tecnologia educacional.
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