Quarenta e quatro anos de jornalismo, mais de 2 mil textos publicados. Neles, um intenso esforço de traduzir a realidade brasileira, interferir nela, permitir que, com base na informação, os brasileiros se manifestassem sobre os rumos do país. Por isso, Aloysio Biondi sempre optou por um texto acessível, original, sem os vícios da linguagem técnica dos especialistas da economia – área em que priorizou sua atuação. As matérias e artigos deixavam clara sua visão crítica e reviravam os conceitos que continham, mostrando que, muitas vezes, um determinado fato poderia, ao menos para a maioria da população, ser interpretado como o oposto do que vinha sendo veiculado pela imprensa. Essas características, apoiadas num obsessivo trabalho de garimpagem de dados, fizeram com que Biondi fosse considerado um dos maiores jornalistas que o Brasil já teve.
Entre a vinda ao mundo em Caconde (cidade do interior paulista), em 8 de julho de 1936, e a partida, em São Paulo, em 21 de julho de 2000, a vida intensa incluiu a passagem por vários dos principais veículos jornalísticos do país. Biondi começou na Folha da Manhã (que depois se tornaria Folha de S.Paulo) em 1956, aos 19 anos. Durante o regime militar (ditadura, em bom português), participou ativamente da resistência com seu trabalho: numa revista Veja muito diversa da atual, desenvolveu uma cobertura pioneira do mercado de capitais; na efêmera, mas impactante, Revista Fator, esmerou-se em destrinchar os números da política econômica do todo-poderoso ministro Delfim Netto; na respeitada Visão, botou lenha na disputa entre ortodoxos e desenvolvimentistas, e venceu um Prêmio Esso ao mostrar os impactos econômicos do desrespeito ao meio ambiente.
Mais adiante foi, durante a década de 90, uma das poucas vozes a se levantar contra foi a abertura econômica sem freios e a condução das privatizações. No período, colaborou com uma série de veículos – Folha de S.Paulo, Diário Popular, Caros Amigos, Revista dos Bancários e Revista Bundas, entre outros – e escreveu o livro O Brasil Privatizado – Um Balanço do Desmonte do Estado, em que calculou quanto o governo gastou e quanto obteve com a venda das estatais. O cálculo cuidadoso mostra que o discurso da equipe econômica do governo Fernando Henrique Cardoso escondia o fato de que R$ 87,6 bilhões não entraram ou saíram dos cofres públicos nesse processo. Isso precisava ser descontado do saldo. “O balanço geral mostra que o Brasil ‘torrou’ suas estatais, e não houve redução alguma na dívida interna, até o final do ano passado (1998)”, escreveu o jornalista. O livro foi um campeão de tiragem: mais de 130 mil cópias.
O método de trabalho de Biondi tinha como regra o imenso esforço de apuração e análise. O segredo de como rastrear as informações certas para reportar os fatos. Na maioria das vezes, sem uma entrevista exclusiva com determinada fonte de conhecimento privilegiado, mas pela própria pesquisa – em balancetes de empresas, no aprofundamento de pesquisas oficiais, no cruzamento de estatísticas e na leitura linha por linha dos jornais. Após semanas debruçado sobre dados de pesquisas, finalizou levantamento pioneiro – “Quem é Quem na Economia Brasileira” – em que eram identificados os personagens principais ligados ao desenvolvimento do país. Em outro caso, no final da década de 1960, lendo todos os mapas de importação e exportação, desconstruiu o discurso da ditadura militar sobre o perfil “essencial” nas compras do exterior. Na década de 1990, sua capacidade de produção o levou a ter simultaneamente duas colunas diárias, várias semanais e inúmeras mensais ou bimestrais.
Na rotina das redações era admirado por sua postura reta. Sua forma de dialogar com editores e repórteres trazia uma forma de pedagogia da profissão – coisa rara nos tempos atuais. Ajudou a formar gerações de jornalistas dentro dos veículos em que trabalhou. Esteve cercado de amigos na profissão: Washington Novaes, Lauro Veiga Filho, Delmar Marques, Irene Solano Viana, Ricardo Kaufman, etc. Exercitava em alguns veículos o hábito de reuniões de pauta abertas a todos da equipe de produção jornalística, como os casos de Diário da Manhã e Shopping News. A verve didática chegaria às salas de aula da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, onde lecionou jornalismo após longo processo de convencimento do então coordenador Marco Antonio Araújo.
O idealismo e a determinação contra o senso comum colocaram Aloysio Biondi em muitas polêmicas e situações complicadas ao longo da trajetória profissional. Pelo mérito e pelo tom de suas críticas, chegou a fazer inimigos dentro de ministérios militares e civis. Manteve longos debates por escrito com colegas jornalistas nas páginas do mesmo veículo, discordâncias públicas com expoentes da própria esquerda, inclusive economistas do MDB, que não admitiam, por exemplo, a fase de retorno do crescimento econômico do país na década de 80 em nome da disputa política contra a decadente ditadura militar.
Era fã de música – clássica e popular brasileira, com destaque para Strauss, Beethoven, Gal Costa e, especialmente, Chico Buarque. Em noitadas caseiras com a roda de amigos mais próximos, mergulhava no piano. Também adorava conversar horas num boteco, expediente que o aproximou de vez de uma turma de alunos e professores. E cozinhar para os filhos. Era capaz de uma caprichada moqueca, mas a escolha quase sempre se dava entre macarrão e capeletti – com três molhos, para não desapontar as preferências. Foi muito apaixonado pela mulher, Angela Leite, artista plástica reconhecida por seu trabalho em defesa da fauna e flora brasileiras, de quem se separou quando os filhos eram adolescentes. Pedro é jornalista e escritor. Antonio também se tornou jornalista e militante pela democratização da comunicação. Bia é música, e escreveu um livro sobre sua vida, no qual compartilha suas dificuldades, desafios e conquistas e como eles se ligam à paralisia cerebral de que é portadora.
Aloysio Biondi se foi exatamente duas semanas depois de completar 40 anos e 288 meses, segundo os cálculos com que costumava brincar. Deixa um legado de ética, coerência e alegria, que este projeto procura honrar. Cada depoimento a seguir e cada linha registrada em seus textos ajudam a contar sua biografia e a própria história recente do jornalismo e dos trabalhadores brasileiros. Em livro aberto.
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