A poesia de Guanaíra Amaral é militante sem qualquer obediência à última moda
Ontem à noite, quando eu procurava um assunto para esta coluna, mas não sabia qual, tive a sorte de receber este pedido de Guanaíra Amaral, do outro lado do mundo, lá da Oceania:
“Vou publicar um livro de poesia pela Terra Redonda Editora e gostaria de um texto seu me apresentando. Anexos, seguem alguns poemas, diferentes tempos e contextos. O livro vai ter 40 poemas. Vou dividi-lo em 4 partes com 10 poemas cada, ilustrações entre elas. Te envio alguns poemas que estão nessas partes.
Se você escrevesse um pouco sobre mim como pessoa, amiga, companheira de lutas e de perdas, seria interessante”.
Por isso agora tento.
A lembrança mais nítida, a melhor lembrança que tenho de Guanaíra vem da música de Paulinho da Viola. Na casa onde ela morava com a mãe, houve uma vez uma festa em que bebemos somente batida de limão, forte, ácida e calorosa. Eu me lembro de que me acerquei de uma pequena radiola e descobri discos inteiros de Paulinho da Viola, o compositor que me falava mais de perto dos meus desencontros. Lembro de que ouvi muitas vezes, quase bêbado, quase em sonho “Num samba curto”, sentado no chão, como se quisesse ali me esconder:
“Só me resta seguir Rumo ao futuro
Certo de meu coração Mais puro”
E agora vamos a outros pontos do sentimento da memória. Quem não conhece Guanaíra saiba que ela era magrinha nos anos 1970, e nesse particular não mudou. Baixinha, franzina, ela é uma energia que parece nascida de 7 meses, e por isso continua até hoje a nascer para o mundo. Imaginem Ela é frágil no corpo, mas isso engana. Ela é forte e grande, crescida pela vida de guerra política no Brasil e estudo. Vaidosa da aparência, reage quando desejo saber da sua idade: “Que pergunta!”, responde. Mas é sincera, até para mostrar que não liga pra essa bobagem , e fala que tem 72 anos. Está certa, porque ninguém lhe dá os próximos 73, e sobre isso não se fala nem se nota. O mais importante: Guanaíra é médica psiquiatra, atendeu a soldados da guerra do Vietnã, na Austrália, e a torturados no Brasil.
Quando eu a conheci, ela era cunhada
de Jarbas Pereira Marques, um dos mortos sob tortura, no massacre da Granja São Bento. Mas como dizê-lo? Guanaíra passa pelo trauma com a destreza de quem assiste a um filme de terror. Que viveu, e por isso trabalhou como psiquiatra contra a violência infame e covarde, sempre.
Se tais marcas da sua vida não soubéssemos, talvez não entendêssemos sob que mistério se faz uma poesia tão boa de direitos humanos. A poesia de Guanaíra Amaral é militante sem qualquer obediência à última moda. É poesia militante porque é histórica, memória da ditadura, dos traumas que passaram por nós e não saem. Se não, sintam, olhem e reflitam:
“Aos jovens de 68 Havia um ponto na rua deserta aberta para um mundo sem tempo. Não havia exclamação nem interrogação nem uma vírgula sequer havia. E eu nem sabia se era o ponto certo nem se o tempo era correto. Não se havia tempo naquele tempo de pontos parados na rua deserta. Era apenas um ponto. Havia medo mas um sorriso congelou o tempo e o ponto se foi carregando uma luz e uma lista dentro da revista. Naquele tempo não havia tempo para escapar do ponto. E era apenas um ponto aberto ao infinito”.
Mas que realização mais bela! Quem guarda a memória da ditadura sabe que nos versos acima se encontram poesia e verdade. Se não exagero, penso que um poema assim bem pode realizar uma vida.
Mas Guanaíra, como se de nada soubesse, ainda escreve:
“Não escrevo poemas, apenas liberto meus medos dessas amarras sociais e casuais. E como mariposas inquietas estão à espera…”
Ah é? E esta linda sobre o padre Henrique, assassinado de modo vil no Recife, destaco estes versos:
“São cintilantes estrelas que povoam a praça de Henrique. Henrique, o padre. Todos juntos como numa nebulosa invadem a praça, Como gritos, sombras, numa dança acorrentada, Como a justiça dos homens, lenta, parcialmente ordenada. A Praça de Henrique, Henrique, o padre. Explode num grito, invade as ruas desertas, penetra no rio e caminha para o mar. No último querer, feito de dor, Liberdade e justiça. Henrique, o padre, Que saudade de você”.
Já perto do fim, leio:
“Poemas, pedaços de esperanças, Acorrentados, Como esse amor feito de amanhãs Nunca alcançados. Poemas feitos de janelas abertas E portas fechadas, Que me fazem caminhar descalça E sem direção, Esse caminho serpenteado. Poemas, meu alimento diário. Não escrevo poemas, apenas, envio ao infinito um apelo…”.
De lá da Austrália me chegou. Com 14 horas de diferença do fuso horário, a poesia que é um apelo humano em versos chegou, Guanaíra. Chegou ontem, chega hoje, agora, amanhã e depois.
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Urariano Mota é jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”.
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