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100 dias de greve pela vida

Por Lira Alli, 20/05/2021, no portal Jacobin Brasil.


Um professor tem 3 vezes mais chance de pegar COVID do que um trabalhador da mesma idade. E por causa disso os professores entenderam que a luta na rua é mais segura do que a resignação dentro de uma sala. Não é admissível ver vans escolares transportando caixões de colegas mortos em decorrência de uma doença para a qual já existe vacina.




No dia da publicação deste artigo, a maior greve em curso em nosso país completa 100 dias. Escrevo estas linhas direto do front de batalha – com noites insones, ameaças de punições e as notícias cotidianas das mortes de colegas de trabalho. Poderia ser uma guerra, mas é a Educação Pública Municipal de São Paulo enfrentando, com luta sindical, a naturalização da morte em um dos maiores epicentros da pandemia de COVID-19.


Não é de hoje que mortes não naturais – na verdade, perfeitamente evitáveis – são naturalizadas em nossas terras. O poder da classe dominante brasileira sempre foi baseado na violência da subjugação e do extermínio de seres humanos, povos e culturas inteiras. Com a chegada de uma pandemia, exatamente no contexto do governo mais autoritário desde o fim da ditadura, a velocidade da matança se intensifica. Caíram as máscaras da hipocrisia: a elite proprietária nunca achou que todas as vidas têm o mesmo valor.


Aliás, para essa elite, que concentra suas contas bancárias na capital paulista, o lucro das grandes empresas sempre valeu muito mais do que a vida do povo trabalhador. E para agradar o lobby da educação privada e forçar uma falsa sensação de normalidade, o governo municipal de São Paulo decidiu pela abertura irresponsável das escolas no início do ano de 2021. Uma decisão arbitrária, no momento em que já se previa um segundo pico de agravamento das transmissões, internações e mortes por COVID-19. Uma decisão que veio na esteira de infinitas outras tomadas contra a classe trabalhadora, e que expuseram milhares de servidoras públicas municipais ao adoecimento e à morte.


A construção da Greve Pela Vida


A greve teve início no dia 10 de fevereiro e foi convocada por um fórum composto por 5 entidades que representam educadoras municipais: o Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo (SINPEEM), a Sindicato dos Professores e Funcionários Municipais de São Paulo (APROFEM), o Sindicato dos Educadores da Infância (SEDIN), o Sindicato dos Especialistas de Educação do Ensino Público Municipal de São Paulo (SINESP) e o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de São Paulo (SINDSEP).


Naquele momento, já percebíamos o que pesquisas mais recentes vieram demonstrar: um professor tem 3 vezes mais chance de se infectar por COVID do que um trabalhador da mesma idade em outro posto de trabalho. Entre os aumentos de desligamento por óbito que cresceram no comparativo do DIEESE em relação aos anos anteriores, trabalhadores da educação só não estão morrendo mais do que médicos e enfermeiros. Salas de aulas são, no geral, pequenas caixas com péssima ventilação em que se aglomeram por longas horas dezenas de pessoas – ambiente perfeito para a propagação do vírus. Os refeitórios, onde é necessário tirar a máscara para comer, são outro espaço chave, tornando as escolas lugares de alto risco para contaminação.


Dois grandes pontos que se destacam distinguem esta greve de outras anteriores. Primeiro, em meio à pandemia, deixaram de acontecer as tradicionais e grandiosas assembleias – que organizavam dezenas de milhares de educadoras em atos de rua. Segundo, diferente das greves das últimas décadas, desta vez a defesa da vida suplanta qualquer outra pauta de caráter corporativo. Agora, a briga central não é por salário ou carreira, mas pela vida. Não só a vida das educadoras, mas de toda comunidade escolar e das famílias trabalhadoras, ou seja, de todo o povo.


Apesar de convocada por entidades sindicais, a verdadeira construção das greves da Educação sempre se deu no chão de cada escola e na articulação territorial das regiões. A divisão territorial da Educação Municipal de São Paulo em 13 Diretorias Regionais de Ensino (DREs) é ponto de partida para a organização dos Comandos Regionais de Greve.


Devido à pandemia, a maior parte das reuniões e atividades se tornaram virtuais. A maior parte dos Comandos Regionais já tinham seus grupos de whatsapp de outras greves, que foram reativados junto com uma rede gigantesca de dezenas de milhares de trabalhadoras que cruzaram os braços.


São incontáveis as reuniões e atividades realizadas nesses 100 dias, em cada célula-base da escola. A greve não é só paralisação, é sobretudo ação coletiva: articulando territórios, desenvolvendo ações simbólicas em lugares emblemáticos, criando consciência e capacidade de agir politicamente em comum. Reuniões, rodas de conversa com a comunidade escolar, atividades de formação, atividades culturais, colagem de lambe-lambe, cartazes, faixas, faixaços, tuitaços, telefonaços, vigílias, manifestações.


Não tem sido tarefa simples tornar viva e pulsante uma greve em meio à uma pandemia, em um momento em que quase todas as forças políticas não-negacionistas estão ainda ausentes da rua. As questões de saúde mental também gritam alto em toda a população, e em nossa categoria não é diferente. Na educação, desde antes da pandemia, já enfrentávamos um quadro de adoecimento psico-social arrasador, que só piorou no último ano. Nesse contexto, os espaços da greve se tornaram possibilidades de encontro e acolhimento. Muitas das atividades virtuais exploraram as questões da saúde mental, com espaço para a criatividade e a arte. Saraus da greve pipocaram pela cidade – pelo menos um a cada semana, senão dois ou três.


No início, como era de se esperar, o movimento estava reticente em realizar grandes atos presenciais. Havia o cuidado de não promover aglomerações irresponsáveis. Com o passar do tempo, o movimento foi construindo formas seguras de estar na rua. E entendendo que a luta na rua é mais segura do que a resignação dentro de uma sala de aula. É possível encontrar registros, já em fevereiro, de atos simbólicos e carreatas – que foram aumentando em quantidade e intensidade com o desenvolvimento da greve, até chegar no ato de hoje. A simbologia construída coletivamente parece querer expor o absurdo da morte sem sentido a que o governo genocida nos condena: roupas e faixas pretas, cruzes, coroas de flores, marcha fúnebre.


Uma das muitas tentativas de enfraquecer o movimento se deu pelas ameaças de cortes dos salários. Para resistir e respaldar quem tivesse o salário cortado, diversas iniciativas de Fundo de Greve foram construídas nas regiões e por sindicatos. A mais ousada – que misturou arrecadação online, campanha de combate à fome e a busca de solidariedade internacional – engloba todas as educadoras, independente de filiação ao sindicato (por sinal, conheça e contribua!).


A luta pela vida e o rompimento com o corporativismo


Em nossos corações de educadoras reside a convicção profunda de que é necessário fazer frente à naturalização da morte. Justamente porque amamos a escola, não podemos deixar que ela se transforme em um lugar de morte. Não é admissível ver vans escolares transportando caixões. As notícias cotidianas de colegas mortos em decorrência de uma doença para a qual já existe vacina são escandalosas, indignantes.



A pauta salarial costuma ocupar sempre o primeiro plano das jornadas grevistas, mas não é possível entender essa mobilização sem levar em conta a história subterrânea das lutas das educadoras, com suas práticas de combatividade, persistência e solidariedade. Sem essas características, é impossível construir a Educação Pública.


Mesmo com todas as contradições que vivemos nas escolas, mesmo sendo moídas por uma máquina violenta, nós, educadoras, insistimos em defender cada vida. E agir orientadas pela ideia de que nenhuma vida vale menos do que outra é um profundo ato de amor. De alguma maneira, todas nós somos filhas da construção da pedagogia freiriana. Até hoje reverberam no interior das escolas as ações do educador Paulo Freire à frente da Secretaria Municipal de Educação, durante a gestão de Luiza Erundina. É uma chama que não se apaga, apesar de todos os golpes.


O amor radical pela vida faz esse momento de trevas que atravessamos especialmente doloroso. Temos encontrado na luta maneiras de processar nosso luto. O primeiro ato com caminhada foi realizado pelo movimento no dia 6 de maio. Na ocasião, a Professora Adriana leu o nome de mais de 200 educadoras vítimas da COVID. Enquanto gritávamos “presente!” para cada um de nossos mortos, no Rio de Janeiro uma ação policial descabida operava uma chacina em Jacarezinho. A necropolítica brasileira tem destruído vidas de maneira sistemática nas favelas e periferias das grandes cidades. Como educadoras que atuam cotidianamente numa das poucas pontas em que o Estado dialoga com a fração mais pobre da sociedade, vemos isso de perto, diariamente. Todas nós tivemos alunos que foram presos ou mortos.


Perdemos a paciência, assim como o pudor de chamar as coisas pelo nome: a elite que controla nossas instituições políticas é genocida. Escolas abertas no pior momento da pandemia é genocídio. Chacina policial é genocídio. Ausência de auxílio emergencial é genocídio. São capítulos de uma guerra continuada contra os pobres.


No dia 13 de maio o movimento grevista não teve dúvida: a caminhada teve o sentido de unificar a nossa luta, pela vida, com a luta do movimento negro, também pela vida. Após um ato em frente à Prefeitura subimos até a Avenida Paulista carregando uma faixa gigante que expressava o grito de digna raiva e a necessidade de enfrentar o genocídio: “Nem bala, Nem fome, Nem COVID. Queremos Viver.” Dávamos um pequeno passo em uma tarefa urgente do nosso tempo: fortalecer a aliança entre o movimento de classe e o movimento negro.


Lições da luta


Hoje voltamos às ruas. Realizamos nossa maior caminhada – e a maior caminhada de um movimento de lutas desde o início da pandemia- no marco dos 100 dias de greve. Por um lado, celebramos todas as vidas que foram salvas por esse movimento de resistência e celebramos nossa capacidade de seguir em luta organizada, mesmo em um contexto tão desfavorável.


Por outro, realizamos um cortejo fúnebre, em homenagem póstuma a cada um dos nossos mortos, que não pudemos velar neste último ano. Um cortejo fúnebre pela constatação de que nosso Estado segue sendo genocida, e que para a classe dominante brasileira – em São Paulo e no resto do país – as vidas do povo trabalhador valem muito menos do que o lucro de uns poucos proprietários. Um cortejo fúnebre por toda escola que perde sua função, pelo desmonte descarado de todo o serviço público.


Ainda não sabemos como se dará o desfecho deste processo, temos um novo prefeito que ainda não mostrou a que veio. Mas a Greve Pela Vida já é um marco na resistência construída em tempos de pandemia, enquanto se começa a voltar às ruas após 2020. Termino esta reflexão apontando cinco importantes lições – que servem a nós, educadoras, mas também podem ser úteis para o conjunto da classe trabalhadora brasileira.


A primeira é de que a luta e o cuidado são duas partes inseparáveis de uma coisa só. Pois é preciso cuidar de si e dos outros para poder cuidar do mundo. Frente não só à pandemia de coronavírus, mas à epidemia catastrófica de sofrimento psíquico no contexto do capitalismo neoliberal e suas dinâmicas atomizadoras e precarizantes, é preciso lembrar sempre que sem a atenção necessária para os adoecimentos psico-sociais que se alastram entre os nossos não conseguiremos ir muito longe.


A segunda é que se luta melhor quando se luta junto, e que a tarefa dos socialistas é construir na prática laços de solidariedade concretos que permitam a formação de coalizões e alianças entre os de baixo. Na nossa experiência, a aproximação entre movimento sindical e movimento negro é uma condição para ganhar força e conquistar vitórias. Ainda que o caminho do fortalecimento das relações e alianças entre movimentos seja longo, contribuir para o fortalecimento de uma confiança mútua e capacidade de ação conjunta é uma responsabilidade prioritária.


A terceira lição é lembrar que somos mulheres e o plural feminino pode se aplicar sim numa categoria que é esmagadoramente composta por mulheres. Não podemos mais ficar invisíveis – nem nos plurais masculinos dos textos nem sendo representadas apenas por vozes masculinas. Colocar nossas vozes e corpos na linha de frente da luta faz uma profunda diferença na nossa capacidade de colocar a vida e o cuidado como questão central.


A quarta é que, com as mudanças no mundo em geral, e em especial no mundo do trabalho, ou o sindicalismo institucional se reinventa, com imaginação e criatividade, ou será ultrapassado pela classe em luta. O desafio passa por criar espaços de acolhimento, com responsabilidade, compromisso, transparência e democracia. A necessidade de fortalecer a comunicação como forma de luta e redes sociais digitais como espaço de articulação política ganham destaque neste momento e é necessário utilizar inteligência para organizar nossos próprios dados e informações.


A quinta e última lição que aprendi durante esses 100 dias e que gostaria de compartilhar é de que a vida vale a pena. E às vezes dizer o óbvio e fazer o mínimo é tudo que precisamos. A vida vale a pena e só a luta pode mudar a desesperadora realidade em que nos achamos hoje. Encontrar uma nos outras a coragem para enfrentar a elite parasita e seu governo genocida é nossa forma de garantir que a vida siga, forte e pulsante, nos nossos peitos e em nossas escolas.

Mesmo com a dor dilacerante das mortes cotidianas, é no processo da luta coletiva que nos abraçamos, nos acolhemos e nos cuidamos. Que honramos as vidas de nossos mortos. Que criamos possibilidades de um futuro comum. Esse é o lado da história, que vamos construindo dia a dia, o lado que vale a pena estar: o de quem defende a vida, e faz do esperançar – do qual tanto nos falou Paulo Freire – uma ação concreta com nome de luta.


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Lira Alli é professora.

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